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A história do milagre de Anchieta ocorrido na Serra que ajudou a torná-lo santo

Representação feita por IA com prompt utilizando informações dos três primeiros biógrafos de Anchieta.

+ O autor dessa artigo é Yuri Scardini, que também escreveu o livro ‘Serra: a história de uma cidade’, clique aqui e veja como comprar.

Em 2014, o Papa Francisco canonizou o padre José de Anchieta [1534 – 1597], tornando-o um santo reconhecido universalmente pela Igreja Católica. Considerado o ‘apóstolo do Brasil’, José de Anchieta foi um dos primeiros jesuítas a chegar ao Brasil no período de colonização portuguesa (1553). Para que se tornasse um santo, foi necessário um longo processo que começou há mais de 400 anos.

Correntes internas da Igreja Católica do Brasil apontam que toda essa demora em reconhecê-lo como santo foi devido a uma espécie de campanha de difamação contra a Companhia de Jesus, da qual Anchieta foi um dos grandes expoentes. Esse é um tema espinhoso, já que os jesuítas foram expulsos dos domínios portugueses na segunda metade do século 18 devido a uma severa crise política na qual estiveram envolvidos em Portugal, e sofreram até mesmo restrições do Papa. Posteriormente, enfrentaram acusações diversas, como abuso de poder, autoritarismo e até desvios sexuais.

Em geral, a Ordem dos Jesuítas não teve a oportunidade de se defender adequadamente das acusações, especialmente nos processos conhecidos como Devassas, embora muitos casos tenham sido parcialmente procedentes. Nem mesmo José de Anchieta, que viveu séculos antes, passou incólume a esse processo, haja vista a polêmica, até hoje debatida, do caso de Jacques Le Balleur, um francês que por algum tempo teria exercido a doutrina calvinista e teria sido enforcado por isso com o consentimento de Anchieta – uma informação sobre a qual não há consenso histórico quanto à sua veracidade.

De qualquer forma, Anchieta foi um dos jesuítas mais reconhecidos no mundo e foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 1980, quando o líder da Igreja Católica esteve no Brasil. A beatificação é um passo intermediário no caminho para a santidade, dessa forma Anchieta pôde ser publicamente venerado em locais específicos ou por grupos específicos dentro da Igreja, algo que já acontecia informalmente no Brasil desde sua morte e o início do seu processo de santificação em 1602.

A santidade reconhecida pelo Papa Francisco em 2014 foi atípica, considerando que Anchieta se tornou santo mesmo sem ter milagres comprovados dentro dos critérios institucionais da Igreja Católica. O tempo de tramitação do processo diluiu grande parte das evidências que poderiam ter sido anexadas, mas dada a relevância de Anchieta e a devoção mundial, especialmente no Brasil, o país mais católico do mundo, isso deu força à figura do jesuíta para que a decisão papal fosse pela sua santificação.

Mesmo com o avanço do tempo, em termos de quinhentismo brasileiro, Anchieta é um dos jesuítas que mais produziu documentação e foi um dos primeiros a aprender a se comunicar com indígenas do tronco linguístico tupi. Sua produção literária, expressa em cartas, poemas e textos, abrange desde a geografia até a biologia daquele Brasil quinhentista. Seus feitos foram amplamente noticiados e muitos acontecimentos, considerados na época como milagres, sobreviveram ao tempo através de registros e relatos documentais, entre eles, um que teria acontecido na Serra.

Algumas fontes da época reproduziram esse acontecimento, que foi considerado um dos milagres de Anchieta. O caso é um dos muitos outros que foram anexados ao processo que fez com que a Igreja Católica canonizasse Anchieta. Podemos encontrar esses relatos em fontes de diferentes origens, e eles seguem mais ou menos a mesma linha.

As três bibliografias mais antigas de Anchieta incluem o relato do milagre que teria acontecido na Serra. O primeiro biógrafo de Anchieta foi o jesuíta Quirício Caxa, que em 1598, apenas um ano após a morte do santo, escreveu a obra ‘Breve relação da vida e da morte do padre José de Anchieta’. Depois dela, outro manuscrito foi trazido a público, chamado ‘Vida do padre José de Anchieta’, de autoria de Pero Rodrigues, escrito entre os anos de 1605 e 1609. Estes dois autores foram contemporâneos de Anchieta e conviveram com ele durante diversos períodos distintos. Inclusive, Quirício Caxa esteve com Anchieta mais próximo ao fim de sua vida, mais ou menos na época em que o milagre foi reportado na Serra. Ambas as publicações utilizaram fontes testemunhais da época e informações vividas pelos próprios autores.

Por fim, mas não menos importante, considerando sua relevância para os estudos da história brasileira, o jesuíta Simão de Vasconcelos escreveu o livro ‘Vida do venerável padre José de Anchieta’ em 1672. Embora ele não tenha conhecido Anchieta e o livro seja uma publicação de décadas após a morte de Anchieta, Simão de Vasconcelos é um dos principais autores sobre o tema e uma fonte estrutural, com uma prolífica produção literária desenvolvida por meio de acesso privilegiado a documentos originais pertencentes à Companhia de Jesus e à Igreja Católica. As três obras são produções literárias quase poéticas e com elementos devocionais muito fortes, mas também são importantes na perspectiva da historicidade.

Sem mais delongas, vamos ao que consta documentalmente a respeito do Milagre ocorrido na Serra, que foi anexado no processo de santificação de Anchieta:

Embora haja incertezas em relação à datação, o milagre teria ocorrido em 1594, na Igreja de São João Batista, no bairro Carapina Grande. A igreja está de pé até hoje, embora tenha sofrido diversas reformas que descaracterizaram sua arquitetura original. É a primeira igreja reconhecidamente construída em território da Serra, além de ser uma das mais antigas da América Latina. Ela foi erguida originalmente em 1584 e, dez anos depois, em 1594, o padre José de Anchieta teria realizado o que ficou conhecido como o Milagre do Pato.

Os três jesuítas e primeiros biógrafos de Anchieta relataram nas três obras literárias acima citadas, que, em 1594, a Aldeia de São João Batista estava em meio a uma grande celebração que atraiu muitas pessoas da Vila de Vitória, incluindo Anchieta e outros padres. Na época, o jesuíta já tinha 60 anos, idade considerada muito avançada para os padrões de expectativa de vida da época. Entre os presentes estava um menino de quatro ou cinco anos, chamado Estevão, que era tido como mudo.

Dentre as danças e outras atividades lúdicas, ocorreu uma competição denominada “Corrida do Pato”. Esse tipo de evento era normal na época e consistia na soltura de um pato, ou outro animal, para uma espécie de corrida, onde quem o pegasse ficava com ele. Na prática, eram festividades com origem em práticas europeias adaptadas às realidades e contextos do Brasil colonial, que envolviam sincretismo cultural indígena e, posteriormente, africano.

A Corrida do Pato resultou em um impasse entre dois homens sobre quem havia vencido. Para evitar uma briga, Anchieta foi escolhido como juiz para resolver a questão. Para isso, o grupo de participantes foi até a igreja de São João de Carapina, onde Anchieta estava. De maneira surpreendente, ele voltou-se para o jovem Estevão e pediu que ele declarasse o vencedor daquela contenda.

Para espanto de todos, o menino, recuperando a fala instantaneamente, respondeu de forma desembaraçada: “É meu, deem-me, para o levar a minha mãe.” Ao menino foi concedido o pato, e ele teria partido, levando não apenas o prêmio, mas também a sua recém-adquirida habilidade de falar, o que levou todo o povo presente a louvar a Deus pelo que tinham presenciado.

“É de se crer que o Padre José já havia previamente discutido este caso com Deus, intercedendo por meio de suas orações, para que tal milagre ocorresse para a glória do Senhor”, acreditou Pero Rodrigues. Já Simão de Vasconcelos escreveu: “Os pretendentes aceitaram a decisão como vinda de Deus, aclamaram a virtude do servo José, e o menino foi embora com o pato, falando até em casa. Dar fala aos mudos, bem sabemos, é um poder exclusivo de Deus e concedido a poucos amigos seus; um desses é José.”

A decisão de acreditar ou não nos fatos narrados acima faz parte do conjunto de crenças que cada ser humano desenvolve ao longo da vida. Em termos de documentação e registros históricos, esse relato é o que se tem de mais sólido sobre esse episódio. É cultural e religiosamente significativo que uma igreja localizada no território da Serra tenha sido reconhecida pela Igreja Católica, uma instituição mundial, como o local onde ocorreu um milagre capaz de fazer de um homem um santo universalmente reconhecido em sua liturgia. Mesmo para os não-católicos, é evidente a grandeza do fato em si, independentemente da crença individual.

Em 1602, foi aberto o primeiro processo informativo no Rio de Janeiro, que, junto com o segundo processo instaurado em Olinda/PE, deu origem, em 1618, ao processo para a causa da canonização de Anchieta. Somente em 1736, ele foi declarado “Venerável Servo de Deus”, título com o qual a Igreja reconhece o caráter heróico de uma pessoa. Contudo, após essa declaração, o processo foi interrompido. Essa interrupção não foi a primeira, pois ocorreram nos seguintes períodos: 1 – de 1634 a 1647; 2 – de 1668 a 1702; e 3 – de 1773 a 1815, quando a Ordem dos Jesuítas foi criminalizada e sofreu severas sanções da própria Igreja Católica.

Em 1980, o Papa João Paulo II, em visita ao Brasil, declarou José de Anchieta “Bem-aventurado Beato”, ou seja, o beatificou. Finalmente, em 2014, o Papa Francisco o canonizou, tornando-o Santo. Em todo esse processo, há na Serra um dos episódios mais destacados, conhecido como o Milagre do Pato, no qual Anchieta teria feito um menino mudo falar. Em termos de amplitude histórica, é mais um exemplo da importância do Espírito Santo e da Serra na formação do Brasil, frequentemente deixada de lado e muitas vezes desconhecida até mesmo pelos próprios capixabas.

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