A zona oeste da Serra já foi um local bastante movimentado no passado (para a proporção da época), bem diferente dos dias de hoje. Isso porque, até o final do século XIX, a freguesia de São José do Queimado vivenciava o seu auge, com um grande fluxo de tropeiros e canoeiros. Eles eram os responsáveis pelo transporte de pessoas e mercadorias numa interessante dinâmica agrícola, que interligava a produção das fazendas dos coronéis das regiões vizinhas à Serra Sede à zona de consumo e exportação, localizada no Centro de Vitória.
O Queimado era onde as mercadorias e as pessoas embarcam através da logística fluvial que o rio Santa Maria estrategicamente permitia. Era comum ver grandes caravanas de animais, especialmente cavalos e mulas carregados de diversos itens agrícolas, nas rotas e pontos de parada na metade oeste da Serra, que foi por onde a cidade começou a desenvolver-se mais plenamente logo após a elevação para o status administrativo de cidade, em 1833 (na época intitulada de vila, já que ainda se utilizava o sistema de divisão administrativa português).
Tudo isso mudou de forma mais radical com o advento do século XX, quando a freguesia de São José do Queimado começou a experimentar sua decadência econômica. Na época, o processo da imigração europeia já estava consolidado, o que criou cidades como Santa Leopoldina, que dividiam a bacia hidrográfica do Santa Maria e, consequentemente, condenaram o Queimado ao fracasso comercial enquanto um entreposto de final de rota. O processo de despovoação do oeste da Serra se intensificou ainda no início daquele século, quando o Espírito Santo passou a investir em estradas, alterando a matriz logística do estado e tornando o rio um canal defasado para o comércio.
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Tudo piorou ainda mais após a construção da Estrada de Ferro Vitória-Minas, que isolou a Serra do eixo de desenvolvimento capixaba e a empurrou para quase 70 anos de pobreza, mazelas e abandono. Nesse intervalo, a cidade precisou redescobrir sua faixa leste, já que por lá era possível redesenhar a cidade entre a Serra Sede e o litoral. Especialmente após o surgimento do prefeito Rômulo Leão Castelo, nos idos dos anos 40 em diante, Jacaraípe, Nova Almeida e Manguinhos passaram por um processo inicial de urbanização; além disso, estradas interligando a Serra Sede e Vitória começaram a ser construídas pela faixa leste.
Dessa forma, a Serra deu as costas para a metade oeste e se voltou para o leste, convicta de que por ali seria o melhor caminho para contornar o ostracismo econômico ao qual foi submetida. Eis que o capital internacional chegou ao Brasil, através das políticas desenvolvimentistas do Regime Militar, que inseriu na Ponta de Tubarão o terminal oceânico da Vale em 1964 e posteriormente implantou a CST em 1983, alterando novamente a lógica econômica da cidade, afastando-a ainda mais da zona oeste e trazendo a centralidade urbana para a faixa sul e sudeste da cidade, especificamente na região do Planalto de Carapina, que recebeu projetos industriais anexos a projetos habitacionais, provocando um isolamento econômico inclusive na própria Serra Sede e empurrando parte expressiva da ocupação irregular para Jacaraípe.
Assim dava-se início à Era Industrial da Serra. Décadas depois, em 2008, a cidade passou a experimentar também a liderança estadual da atividade logística, marcando outro período de composição econômica. No entanto, não houve alteração na territorialidade urbana, pois a metade leste continuou sendo o verdadeiro epicentro do desenvolvimento urbano da Serra com o Planalto de Carapina no centro desse processo, especialmente após a consolidação do Civit II.
Transcorridos mais de 100 anos desde o início do declínio do Queimado e do despovoamento da zona oeste, a Serra novamente volta sua atenção para essa esquecida faixa de terra onde o sol se põe, ou seja, a parte oeste, que se estende do Mestre Álvaro até o rio Santa Maria, que limita a divisa com Cariacica e Santa Leopoldina.
Mas por que a cidade deve voltar a olhar para o oeste planejando as próximas décadas? A Serra possui uma peculiaridade em relação a Vitória e Vila Velha. Essas duas cidades se desenvolvem impulsionadas por projetos da iniciativa privados. O poder econômico particular chega a uma determinada região e realiza investimentos imobiliários e comerciais; posteriormente, o poder público intervém, organizando a expansão e urbanizando. Na Serra, por outro lado, é o poder público que lidera os investimentos. É ele quem precisa fomentar o desenvolvimento, primeiro abrindo estradas que conectam vastas áreas vazias e, somente depois, o setor privado descobre as novas zonas de expansão.
Foi assim que o primeiro projeto a oeste, pós-era industrial, aconteceu. O Contorno de Vitória foi a primeira grande experiência de reconexão da zona oeste da Serra. Concluído nos idos dos anos 1980, a estrada interligou a BR-101 com Cariacica pelo oeste com o objetivo de desafogar o fluxo de trânsito em Vitória. Demorou muito para que aquela faixa se consolidasse como uma região de expansão econômica e urbana. Somente em 2006, por exemplo, a Alphaville Urbanismo S/A iniciou o empreendimento que hoje forma o bairro Jacuhy, um complexo condominial de luxo.
Ainda assim, foi um projeto na margem sul da cidade, quase na divisa, o que não alterou o isolamento do distrito do Queimado e Calogi, muito menos as áreas não litorâneas a oeste de Jacaraípe e Nova Almeida. Transcorridas décadas desde esse primeiro passo, em 2024, o grande projeto de infraestrutura rodoviária a oeste da Serra finalmente foi inaugurado: o Contorno do Mestre Álvaro. Após mais de 20 anos de tratativas, idas e vindas do Governo Federal e uma contínua pressão de múltiplas forças políticas locais, a nova rodovia desviou o fluxo de trânsito nacional de dentro da malha urbana a leste da Serra para a zona rural a oeste da cidade.
As áreas mais ao sul do Contorno do Mestre Álvaro, que se liga com o Contorno de Vitória, são terrenos mais complexos ambientalmente, já que estão mais próximas da baixada brejosa do Mestre Álvaro, que funcionam como áreas naturais de drenagem de água e evitam o alagamento de mais de uma dezena de comunidades. Essas áreas, que no passado agrícola da Serra eram utilizadas para o plantio de arroz devido às suas características alagadas, vão mudando conforme avançamos ao norte. Especialmente após o Centro de Detenção Provisória (CDP) do Queimado, local onde o solo começa a se estabilizar e a paisagem alagadiça dá lugar a fazendas, pastos e propriedades rurais, que se estendem até a conexão do Contorno com a BR-101.
Esse é um projeto de muito potencial, associado ao fato de que, a partir dele, a atual BR-101 entre Serra Sede e Carapina será municipalizada, finalmente conferindo à cidade autonomia administrativa para determinar o rumo e o ritmo de desenvolvimento desse eixo tão importante. O Contorno do Mestre Álvaro soma-se a outra obra em ritmo acelerado de execução: o Contorno de Jacaraípe. Geograficamente, esse novo viário não está tão a oeste como o Contorno do Mestre Álvaro, porém, exercerá um papel importante para toda a região da Grande Jacaraípe e Nova Almeida.
Na prática, a ideia é a mesma: desviar o fluxo de trânsito das zonas de ocupação consolidadas a leste, rumo a oeste. Nesse caso, passando pelas áreas pertencentes à Suzano (ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose), que é dona de quase 10% da Serra e utiliza a maior parte dessas áreas para o plantio da monocultura do eucalipto, a qual não traz nenhum benefício para a Serra em termos de geração de emprego, renda, impostos, biodiversidade e expansão socioeconômica.
O Contorno de Jacaraípe vai devolver a Abdo Saad sua vocação para o turismo e desviar o fluxo de caminhões para a área não litorânea de Jacaraípe e Nova Almeida. Porém, isoladamente, ele traz mudanças limitadas. Aí que entra outro projeto: o Contorno de Santa Cruz, uma rodovia projetada pelo Governo do Estado que vai criar um novo eixo viário entre a BR-101 e a ES-010, interligando a zona de expansão logística-portuária de Aracruz com a Serra. Dessa forma, conectando o Contorno de Jacaraípe e o de Santa Cruz, a Serra estará inserida, pela faixa oeste, na pujante economia do norte capixaba, que está dinamizando Linhares, mas sobretudo Aracruz.
Interligar melhor Aracruz com a Serra vai possibilitar que o parque de metalmecânica da Serra amplie sua competitividade, em um contexto em que o Estaleiro Jurong deve absorver parte dos investimentos oriundos do bilionário acordo entre a Petrobras e a Seatrium O&G Americas Limited, dona do estaleiro, para a construção de dois navios-plataformas. Sem contar o complexo portuário, a Suzano e a Zona de Processamento de Exportação (ZPE) recém-instituída em Aracruz. A Serra precisa absorver parte do dinamismo econômico que está acontecendo em Aracruz, pois tem maior capacidade de oferta de mão de obra, serviços e infraestrutura. E as zonas a oeste são o caminho por onde tudo isso pode acontecer.
Se fosse possível imaginar outro projeto, ligando o futuro Contorno de Jacaraípe com Serra Sede, talvez através da Variante de São Domingos já idealizada pela Prefeitura da Serra, haveria assim uma outra Serra: aquela que emergiu após 1960, impulsionada pelo Complexo de Tubarão; e uma outra, que será estabelecida pelas faixas a oeste das zonas já ocupadas, canalizadas pelos Contornos, com conexão econômica com o norte capixaba, proporcionando a Jacaraípe e Serra Sede uma nova oportunidade de redesenhar sua importância econômica e tributária para a cidade.
A Serra também tem a oportunidade de receber investimentos na atividade logística que estão migrando do Rio de Janeiro; o estado está enfrentando múltiplas crises, o que está provocando profundas dificuldades para esse segmento econômico, com perdas exorbitantes devido à completa insegurança no transporte de cargas. Essa tendência já é observável, e a Serra é a capital logística do Espírito Santo, estado vizinho ao Rio. A abertura de novos eixos viários pode criar um corredor para ampliar essa vocação natural da cidade, em um momento em que o Espírito Santo se tornou referência nacional em aspectos como governança fiscal e estabilidade institucional.
A ocupação dessa área para fins econômicos não será um processo rápido e automático, e nem deve ser, considerando os melindres ambientais. Estamos tratando de projetos para as próximas décadas. O Poder Público precisará agir conforme a demanda se apresentar; porém, fica evidente que o crescimento populacional da Serra seguirá contínuo, talvez a uma taxa de 10 mil habitantes por ano, tornando-a uma das cidades que mais crescem em número de habitantes no país. Atualmente, 60% do território da Serra é rural, e se há a necessidade de a Serra continuar expandindo economicamente para sustentar o crescimento populacional e as demandas que dele surgem, a faixa oeste das áreas já consolidadas é o verdadeiro caminho para o sucesso do próximo século.