Os escritos da Companhia de Jesus narram um ambiente pacificado na antiga Aldeia de Reis Magos – que deu origem à região de Nova Almeida – onde reinava uma suposta relação paternalista entre jesuítas e indígenas. Serafim Leite, reconhecido autor no assunto jesuíta, chegou a afirmar que “só uma vez [os indígenas] deram desgosto aos Padres, alvoroçando-se nos meados do século XVIII”, episódio que, segundo ele, teria sido rapidamente resolvido¹.
Por outro lado, outras evidências apontam para uma realidade bem diferente. O tal alvoroço mencionado por Leite foi, na verdade, uma revolta indígena que irrompeu no início da década de 1750 e se prolongou talvez por três ou quatro anos, culminando na expulsão dos jesuítas de Reis Magos, sob a acusação de graves abusos de autoridade. Um capítulo da trajetória da Serra pouco conhecido e que foi abordado no livro ‘Serra: a história de uma cidade’, publicado pelo Tempo Novo e de autoria de Yuri Scardini (veja onde comprar clicando aqui). A Revolta de Reis Magos beirou um estado de revolução indígena, que se não fosse a escassez de informação primária, poderia ser um episódio afamado no Espírito Santo.
Insatisfação anterior à revolta
Há evidências de tensão latente muito antes da eclosão da revolta. O botânico e naturalista Auguste de Saint-Hilaire, que esteve em Reis Magos (na época já renomeada como Nova Almeida) décadas após o episódio, registrou que a memória dos moradores locais não era favorável aos jesuítas².
Saint-Hilaire documentou relatos sobre as regras rígidas impostas pelos jesuítas. Além dos registros colhidos por ele, o Auto de Devassa ocorrido no Espírito Santo entre os dias 28 de maio e 27 de agosto de 1761 documentou episódios específicos ocorridos durante o domínio jesuítico em Reis Magos³.
A Devassa nos jesuítas
O Auto de Devassa contra os jesuítas no Espírito Santo foi realizado no contexto da expulsão da Companhia de Jesus dos territórios portugueses devido a tensões políticas na Europa. Em termos simples, foi um processo investigativo judicial destinado a descobrir e punir crimes. Em geral, os jesuítas alegam que as investigações oriundas dos Autos de Devassas, foram peças jurídicas para legitimar a perseguição política que sofreram, uma vez que as investigações tinham caráter inquisitorial e lhes foi negado o direito de defesa. Ainda sim é possível extrair um retrato do ambiente inflamado que envolveu Reis Magos naquele período. A Devassa colheu relatos de 63 testemunhas sobre episódios ocorridos na vila de Vitória, Reis Magos e Reritiba (atual cidade de Anchieta), com suas respectivas áreas de influência.
São acusações de governança ditatorial imposta pelos jesuítas, que enfatizaram o controle draconiano estabelecido sobre os aldeões, as prolongadas jornadas de trabalho que eram requisitadas aos indígenas, escândalos sexuais e as severas punições infligidas àqueles que ousavam desafiá-los, como açoites, perseguição, vingança, expulsão e até morte. Um dos casos que mais revoltou os indígenas de Reis Magos, já que foi citado recorrentemente pelos depoentes, diz respeito ao assassinato de um indígena de nome André Carvalho, que teria se negado a trabalhar a mando dos jesuítas. Ele teve voz de prisão dada pelo padre José Vieira, e no cumprimento da ordem, o indígena teria sido assassinado a tiros, uma ação em que os depoentes atribuíram à vingança do padre4.
Outro incidente que reverberou profundamente em Reis Magos e parece ter intensificado o sentimento de revolta foi o caso envolvendo Belchior Martins. Este não era um mero aldeão. Belchior ocupava a posição de capitão-mor indígena de Reis Magos, tornando-se a figura nativa mais proeminente. Ele era um crítico dos jesuítas, a quem os enfrentava por exigir dos habitantes da aldeia que realizassem trabalhos árduos para eles. No entanto, o que realmente provocou a ira dos religiosos foi seu pedido pela presença de um pároco não afiliado à Companhia de Jesus para atuar como líder espiritual da aldeia.
Sendo desafiados, os padres retaliaram Belchior Martins. Eles o prenderam, açoitaram e, posteriormente, enviaram para uma prisão no Rio de Janeiro, onde ele encontrou seu fim algum tempo depois. Dois outros indígenas, Antonio Vieira e Antonio dos Banhos, que defenderam Belchior, também terminaram presos por ordem dos jesuítas5.
Também há fartura de acusações de cunho sexual envolvendo os jesuítas. Um dos acusados foi o padre Nicolau Rodrigues, que ocupou a posição de superior da aldeia, em que mantinha convivência íntima com uma indígena chamada Rosa. Outro religioso, Júlio de França, que também foi superior em Reis Magos, foi acusado de manter relação amorosa com várias indígenas, entre as quais uma conhecida por Raimunda, que era casada e inclusive teria dado à luz um filho do padre. Outro jesuíta Francisco Ferraz também foi acusado por testemunhas de transgressão sexual. Só que este teria ido mais além, mantendo um relacionamento amoroso com duas indígenas, Paulina e Páscoa, com quem teve dois filhos.
Há ainda uma série de padres que passaram pela aldeia, como André Vitoriano, Caetano Mendes, Luis Alvares, João das Neves e Manuel Pestana, que foram igualmente apontados por comportamentos sexuais em conflito com os dogmas católicos. São acusações graves e que não oportunizaram aos jesuítas o direito de defesa, ainda que não sejam deslegitimáveis e muitas das quais feitas em detalhes por mais de um depoente, representam o olhar de apenas um dos lados em um contexto de crise política entre a Coroa Portuguesa e a Companhia de Jesus.
Orobó, a inspiração
A insatisfação em Reis Magos era crescente e começou a ganhar ímpeto entre 1742 e 1745, tendo primeiro como epicentro a Aldeia de Reritiba, atual cidade de Anchieta. Este local foi palco de uma revolta indígena, o qual resultou na fundação da comunidade de Orobó. Essa comunidade, situada no que hoje é a cidade de Piúma, foi uma forma de povoamento insurgente que desafiou a autoridade dos jesuítas. O surgimento de Orobó serviu de combustível aos indígenas em Reis Magos, que enxergavam neste movimento uma inspiração para sua própria rebelião6.
Os anos subsequentes foram de muito conflito em Reis Magos marcados por intensos embates, com ameaças constantes de sublevação e insubordinação, tendo Orobó como referência de revolta bem-sucedida. No entanto, a situação chegou ao seu clímax somente no início da década seguinte.
Estoura a Revolta
As informações disponíveis acerca da Revolta de Reis Magos são escassas e, em sua maioria, estão mais focadas nos eventos de Reritiba, que culminaram na criação de Orobó. Através dos documentos que sobreviveram ao tempo, pode-se deduzir que a Revolta de Reis Magos provavelmente teve início no começo da década de 1750. Acredita-se que a situação de agitação persistiu até, pelo menos, maio de 17557.
O estopim para o agravamento das tensões pode ter sido a chegada de um “padre-moço” à aldeia, que teria ido à Reis Magos com o intuito de aprender a Língua Geral. Um Ofício assinado pelo governador Interino do Rio de Janeiro, que acompanhou o caso, sugere que o comportamento inadequado do jovem padre pode ter inflamado os ânimos entre os aldeados. Embora não se saiba o nome desse padre, Reis Magos foi de fato referência para estudantes em formação religiosa que buscavam experiência e aprendizado da Língua Geral.
Não há informações sobre o que esse jovem sacerdote teria feito para irritar tanto os habitantes, mas certamente foi a ‘gota d’água’ para a revolta. Sem entrar em detalhes, o jesuíta Ignácio Leão que era Reitor do Colégio Jesuítico em Vitória, noticiou na época que os indígenas da aldeia estavam descontentes com a gestão que estava sendo conduzida8.
Não há clareza se antes ou depois da revolta ter estourado, mas os habitantes escolheram um novo líder, de nome José da Rocha, qualificado como “cacique” pelos jesuítas, contrariando frontalmente as ordens dos padres, haja vista que essa denominação era oriunda de uma organização das sociedades indígenas não-cristãs. Rocha foi o cabeça do movimento revoltoso que resultou na sumária expulsão dos jesuítas da aldeia. Além disso, os oficiais indígenas leais aos padres, bem como suas famílias, foram igualmente expulsos e forçados a se refugiar na Aldeia de Reritiba.
É provável que o caso envolvendo o capitão-mor indígena Belchior Martins – que se insurgiu contra os padres anos antes e acabou sendo perseguido e morto – tenha resultado na manobra estratégica dos jesuítas de ocupar os postos-chave de comando, nomeando apenas indivíduos que aderissem inquestionavelmente às suas regras. Com o passar do tempo, essa estratégia pode ter gerado ainda mais insatisfação diante do silenciamento da voz indígena, além de ter incentivado o surgimento de líderes informais, como o caso de José da Rocha.
Sabe-se muito pouco sobre José da Rocha e a Revolta em si, mas este foi o primeiro movimento de grande proporção, organizado e bem-sucedido contra o poder dominante em território serrano. O jesuíta Ignácio Leão o criticou fortemente, classificando José da Rocha como um homem violento e autoritário, o que não deixa de ser natural do processo. Após a expulsão dos jesuítas, as regras de acesso à região de Reis Magos foram abolidas, concedendo aos aldeões uma liberdade que nunca experimentaram. Leão, ao listar suas críticas, alegou que os indígenas estavam estabelecendo relações sexuais com as pessoas escravizadas das fazendas próximas.
O padre argumentou que o crescente contato entre os nativos e os brancos poderia ser potencialmente prejudicial do seu ponto de vista, já que os indígenas eram frequentemente cooptados para trabalhar nas propriedades. As acusações de natureza sexual parecem ter sido uma espécie de ‘chumbo trocado’ entre os jesuítas e os indígenas. No entanto, a diferença fundamental reside no fato de que, ao contrário dos jesuítas, os indígenas não tinham feito votos de celibato e não eram bastiões da moralidade cristã. As queixas de Ignácio Leão também evidenciaram a constante tensão entre colonos e jesuítas pelo controle da mão-de-obra indígena.
A literatura jesuíta dá ênfase a luta antiescravidão indígena, mas pouco fala sobre os trabalhos análogos a escravidão que os nativos brasileiros foram submetidos nas aldeias organizadas pela Companhia de Jesus. Ignácio Leão também reclamou da falta de ação da Capitania do Espírito Santo em subjugar a revolta. Mas o contexto jogava contra o padre, pois, naquela época, a Companhia de Jesus já estava enfrentando severa crise política com Portugal. Possivelmente, para a Capitania do Espírito Santo não compensava entrar em conflito com os indígenas, que constituíam parte da força de defesa da própria Capitania, para lidar com uma controvérsia que envolvia a conduta dos religiosos, que àquela altura já estavam na véspera do banimento dos domínios portugueses.
A documentação da época sugere que havia algum nível de supervisão da Capitania sobre a situação em Reis Magos, porém optou-se por não intervir diretamente. Ao invés disso, os próprios padres foram deixados para resolver suas desavenças. Apesar de Ignácio Leão ter retratado o líder da revolta, José da Rocha, como um indígena violento, não existem evidências de que tenham ocorrido mortes em Reis Magos, uma situação bem distinta do que ocorreu em Orobó. Talvez, em face à violência dos eventos no sul do Estado, na década anterior, os oficiais indígenas e os jesuítas, percebendo que não podiam conter o movimento, optaram por se retirar o mais rápido possível.
Com as escassas informações que temos, podemos supor que José da Rocha foi um líder bastante eficiente, já que tomou o comando de Reis Magos organizando um movimento revoltoso que, em tese, não derramou sangue, instituindo um autogoverno indígena na maior Aldeia da Capitania do Espírito Santo. É de conhecimento que os jesuítas foram banidos do Brasil entre 1759 e 1760. Além disso, sabemos que até 1755, a aldeia de Reis Magos estava sob autogoverno indígena, com José da Rocha no comando. Apesar das afirmações de Serafim Leite de que os jesuítas retornaram a Reis Magos, é improvável que, nesse breve intervalo, eles tenham recuperado integralmente o controle da aldeia.
É inegável que os jesuítas retornaram em algum momento, uma vez que dois deles foram capturados em Reis Magos durante o processo de expulsão geral do Brasil, ocorrido em 1760. No entanto, é mais plausível que eles residissem em Reis Magos apenas com responsabilidades eclesiásticas, não mais exercendo a mesma autoridade de antes. Curiosamente, no Auto de Devassa não contém qualquer menção à Revolta de Reis Magos, diferentemente de Orobó, que é amplamente citado pelos depoentes. Considerando o aspecto de revolta, Reis Magos cumpriu com seu propósito, visto que os indígenas alcançaram seu objetivo aparentemente sem derramamento de sangue e sem necessidade de migrar para outra localidade – algo que ocorreu na sequência da Revolta de Reritiba, que deu origem a Orobó.
Contudo, para a memória daquela época, a batalha sangrenta no sul da Capitania ganhou maior notoriedade. Não se sabe o fim de José da Rocha, já que não existe qualquer referência a ele nos documentos pesquisados após 1755. De qualquer forma, o indígena foi qualificado como ‘cacique’ pelo padre Ignácio Leão, para tanto não devia ser jovem. No Auto de Devassa, que colheu depoimentos em 1761, o capitão-mor de Nova Almeida era um homem chamado Dionizio da Rocha, talvez fosse parente de José da Rocha.
Dionizio nutria muito rancor contra os jesuítas, afirmando que os padres eram vingativos, soberbos e despóticos9. A tese mais explícita é que José da Rocha já estivesse morto em 1761, e Dionizio tenha dado sequência ao espólio familiar, considerando que fossem parentes.
Cidade de Nova Almeida
A Revolta de Reis Magos antecedeu em alguns anos a expulsão dos jesuítas do Brasil e a elevação de diversas aldeias a vilas, entre as quais Reis Magos, que se tornou Nova Almeida (na divisão administrativa de Portugal, vila seria similar a cidade nos dias de hoje). Entre dezembro de 1759 e janeiro de 1760, os jesuítas que atuavam no Espírito Santo foram exilados. No dia 15 de julho de 1760, após ordem do Rei de Portugal, D. João I, o ouvidor Francisco de Salles Ribeiro oficializou e celebrou a instalação da vila de Nova Almeida, um evento marcado por grande festividade e que fez de Nova Almeida uma das primeiras vilas constituídas no Espírito Santo, antes mesmo da própria Serra.
1 – Leite, Serafim. Tomo VI. Cap. III. Página 178
2 – Saint-Hilaire, Auguste de. Segunda Viagem ao Interior do Brasil: Espírito Santo (1833). Companhia Editorial Nacional. São Paulo. Ano: 1936. Página: 139.
3 – Auto de Devassa foi produzido por Antonio Estevez Ribeira, então sacerdote em Guaraparim, entre os dias 28 de maio e 27 de agosto de 1761. O documento colheu depoimentos de 63 moradores das Vilas de Vitória, Nova Almeida, Guarapari e Benevente. É possível ter acesso ao documento manuscrito por meio do Projeto Resgate Barão do Rio Branco que é um programa de cooperação arquivística internacional.
4 – Auto da Devassa. Identificador: AHU – ACL – CU – 003, Cx. 17, D. 1530.
5 – Ibid. Porém com informações auxiliares de Luís Rafael Araújo Corrêa, em ‘Insurgentes Brasílicos: Uma comunidade indígena rebelde no Espírito Santo colonial’. Página 496.
6 – No Ofício manuscrito do governador interino do Rio de Janeiro, José Antonio Freire de Andrade, com data de 15 de maio de 1755, o autor cita Orobó como uma inspiração para os aldeados de Reis Magos. Identificador: AHU_ACL_CU, Cx. 79, D. 18291. Disponível digitalmente através do Projeto Resgate Barão do Rio Branco.
7 – Isso é evidenciado por um ofício com data de 15 de maio de 1755 escrito, por José Antônio Freire de Andrade, o governador da Capitania do Rio de Janeiro na época. Neste ofício, foram delineadas medidas que deveriam ser implementadas para prevenir a fuga dos indígenas da aldeia. Disponível digitalmente através do Projeto Resgate Barão do Rio Branco, através do identificador: AHU_ACL_CU, Cx. 79, D. 18291.
8 – Informação do jesuíta Ignácio Leão que consta em anexo no ofício manuscrito do governador interino do Rio de Janeiro, José Antonio Freire de Andrade. AHU_ACL_CU, Cx. 79, D. 18291.
9 – Auto da Devassa. Identificador: AHU – ACL – CU – 003, Cx. 17, D. 1530