REINALDO JOSÉ LOPES
Pesquisadores brasileiros conseguiram mapear algumas das alterações no DNA que transformaram as baleias nos maiores animais de todos os tempos. Parte dessa receita de gigantismo tem a ver com trechos de material genético associados ao crescimento, é claro, mas outras transformações importantes são mais insuspeitas, como a capacidade de controlar o aparecimento do câncer e a desativação da formação dos dentes.
Um novo estudo sobre o tema acaba de sair no periódico especializado Scientific Reports, assinado por uma equipe do Laboratório de Genômica Evolutiva da Unicamp. Segundo a coordenadora do trabalho, Mariana Freitas Nery, o ponto de partida do grupo foi analisar genes (grosso modo, regiões do DNA que contêm as instruções para a produção de proteínas) já sabidamente associados ao processo de crescimento em outras espécies de mamíferos.
“São espécies filogeneticamente próximas dos cetáceos”, ou seja, pertencentes a ramos vizinhos das baleias na árvore genealógica evolutiva dos mamíferos, explica a pesquisadora.
Apesar da aparência muito diferente que adquiriram nas últimas dezenas de milhões de anos, as baleias fazem parte do grande grupo dos animais com número par de cascos, o que inclui os porcos e as vacas atuais.
“Como os padrões de crescimento desses animais são muito estudados por conta do interesse comercial, nós já temos uma ideia dos genes que poderiam ter um papel no desenvolvimento das baleias também”, diz ela. “Mas o que nós vimos é que nem sempre os mesmos genes importantes para o tamanho desses animais tiveram o mesmo papel com as baleias. A evolução é muito criativa.”
Para a análise, os cientistas definiram como “nota de corte” do gigantismo dos cetáceos atuais um comprimento de pelo menos 10 metros. Entre as várias espécies atuais que ultrapassam essa marca estão o maior animal de todos os tempos, a baleia-azul (Balaenoptera musculus), que atinge cerca de 30 m, a baleia-fin (B. physalus), de até 25 m, e a baleia-jubarte (Megaptera novaeangliae), que pode alcançar 19 metros.
Todas essas espécies pertencem a um subgrupo no qual houve uma perda dos dentes e a formação de barbatanas filtradoras na boca –filamentos que ajudam a reter pequenas presas, como os crustáceos de pequeno porte conhecidos como krill, quando a água passa pela bocarra aberta dos animais.
Há gigantes também em outro subgrupo dos cetáceos que mantiveram os dentes– o grande exemplo é o cachalote (Physeter catodon).
No estudo, Nery e seus colegas compararam genes de 19 espécies de cetáceos, entre as quais sete foram classificadas como “gigantes”. A ideia, explica a pesquisadora da Unicamp, era identificar se alterações nesses genes estavam sendo favorecidas pela seleção natural ao longo de milhões de anos de evolução. Ou seja, se uma alteração no DNA correspondeu a um maior sucesso na reprodução e na sobrevivência dessas espécies com o passar do tempo.
Uma das formas de tentar estimar isso é surpreendentemente simples. As “letras” químicas de DNA dos genes contêm a receita para a produção de proteínas do organismo. Mas nem sempre a troca de uma “letra” de DNA altera a proteína correspondente ao gene. Algumas alterações mantêm a proteína inalterada e, por isso, são chamadas substituições sinônimas. É, de fato, como um sinônimo das línguas humanas –”carro” e “automóvel” possuem, em geral, o mesmo sentido em português.
Por outro lado, existem também as substituições não sinônimas, quando trocar uma “letra” de DNA produz uma proteína bem diferente da usual –como trocar “carro” por “corro” em português.
O método usado no novo estudo investiga justamente a proporção de substituições não sinônimas versus substituições sinônimas na evolução das baleias. A ideia é que, se determinado gene sofreu mais substituições não sinônimas, é sinal de que a proteína correspondente a ele está passando por mudanças significativas com o passar do tempo. Ou seja, provavelmente novas versões dessa proteína estariam sendo favorecidas pela seleção natural.
Usando essa abordagem, os pesquisadores identificaram mudanças em alguns genes que parecem ter papel sob medida para transformar as baleias nas gigantes que são hoje. É o caso do NCAPG, um gene associado ao ganho de peso, à eficiência na alimentação e ao crescimento durante a puberdade em bovinos, ou do GHSR, cuja ativação pode estimular a liberação de hormônios do crescimento. Mas outros elementos dessa história são bem menos óbvios.
Na linhagem das baleias “desdentadas”, por exemplo, a equipe identificou que um gene conhecido como EGF se tornou um pseudogene –ou seja, na prática, parou de funcionar como receita para proteínas. A questão é que ele é importante justamente para a formação dos dentes, o que indica que, nesse subgrupo, uma das chaves para o gigantismo foi justamente perder essas estruturas.
“A evolução de um tamanho grande tem tudo a ver com a alimentação”, explica Nery. “A perda desse gene logo no ancestral do grupo foi importante para a evolução da alimentação por filtração pelas barbatanas. Esse tipo de alimentação permite a ingestão de uma quantidade muito grande de plâncton e zooplâncton, que são muito ricos em energia. O gigantismo nos cetáceos provavelmente se iniciou também em uma época em que os mares estavam riquíssimos em nutrientes.”
Por fim, outro gene identificado pelo estudo, o IGFBP7, é importante nos processos que regulam o crescimento, a multiplicação e o envelhecimento das células, ajudando a evitar, por exemplo, a formação de tumores. O câncer, aliás, em tese seria um perigo para animais que adquirem dimensões enormes, porque crescer exige muita multiplicação das células, e é justamente nesse processo que aparecem erros de cópia no DNA que desencadeiam a formação de tumores.
As baleias, no entanto, parecem controlar isso muito bem. “E não é só porque baleia não fuma”, brinca a pesquisadora. Alterações no IGFBP7 ao longo da evolução do grupo podem ter ajudado nisso, de acordo com o estudo.
Nery lembra que os genes identificados no estudo são apenas parte da história, já que as transformações evolutivas que produziram as baleias atuais foram complexas e multifacetadas. Segundo ela, a equipe também está investigando as chamadas regiões reguladoras do DNA, que não correspondem a genes propriamente ditos (não são a base para a produção de proteínas), mas podem influenciar o padrão de ativação e desativação dos genes.