Por Clarice Poltronieri
Um melro, também conhecido como maria preta e o calafate, como pardal de java, foram flagrados juntos em Manguinhos. O episódio ocorreu há cerca de duas semanas por Sylvia Abaurre no quintal de sua casa. Os dois pássaros de raças diferentes ficaram por vários instantes pousados lado a lado como se fossem velhos amigos.
Encantada com o episódio, Sylvia clicou a dupla e compartilhou em sua rede social, fazendo algumas observações.
“Onde quer que o Calafate fosse, o Melro ia atrás. Ficava juntinho, do lado, encostado. O calafate dava dois passinhos para a esquerda, o melro fazia a mesma coisa…. Foi assim na mangueira, no fio, na pitangueira, nos comedouros, no flamboyant… Era como se fosse um discípulo acompanhando um mestre. Em posição de reverência, pouco se mexendo. Fui fotografando, fotografando… e até a hora em que saí para almoçar, continuavam assim, com esse comportamento. Esse calafate certamente fugiu de alguma gaiola e a Maria Preta certamente nasceu livre. Não faço a mais pálida ideia do que este comportamento pode significar”, observou Sylvia.
A postagem, além de muitos comentários surpresos e apaixonados, rendeu uma crônica da amiga paranaense Adriana Sydor. Confira abaixo a crônica de Adriana, que foi mantida na sua forma original, e as fotos de Sylvia.
alguma coisa acontece no reino de Manguinhos
o lugar rodeia a realidade, dança em sua órbita, pisca-lhe os olhos, mas não se rende. fica sempre a dois passos do verídico, da ordem que aprendemos como crível. tudo tem cor de fantasia, mas se exibe, tátil, diante dos olhos.
acho graça.
dessa vez, um encontro. a Sylvia me contou.
não entendo de pássaros, mas estou habituada a vê-los por aí, em pares ou em grupos, na tolerância da mesma espécie. algumas famílias até se respeitam, mas não se misturam. cada macaco no seu galho e pronto.
o caso se deu a partir do encontro de um Calafate e um Melro. o primeiro parece que é bicho de gaiola, o outro de liberdade.
a liberdade é coisa que precisa ser aprendida. não conquistada, mas intuída dia a dia na sinfonia da experiência. é um mistério cheio de armadilhas e perigos. é também uma ilusão. só os mais fortes de espírito lhe são capazes.
e esse Melro, tão livre quanto seu voo, é a expressão mais simples e definitiva de autonomia. se exibe a fazer pirotecnias em asas ou piados? briga e protege seus espaços? regula comida ou dá broncas? não. o pássaro, dono da liberdade desde que nasceu, sabe que não tem nada, que não ter nada é ser livre. mais, ele conhece a sobriedade, não precisa fazer alarde do que é, do que tem.
ser livre é ser mais. e ser mais é, também, abaixar a cabeça e deixar que o próximo te observe, te aprenda, te saiba. sem medo nem disputa. na autonomia está também a modéstia, a verdadeira e decente modéstia.
e o Calafate? observa tranquilo, olhos de aprender. tem, diante de si, nessa terra de fantasias que é Manguinhos, um mestre da mais alta dignidade. segue em silêncio, cada movimento do outro é um aprendizado que coloca dentro de sua mala. quando a bagagem estiver completa, a deixará e voará livre, porque quem é livre não precisa dos pesos.
(Adriana Sydor)
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