Era janeiro de 1997 quando o jovem médico Sérgio Vidigal, na época prestes a fazer 40 anos de idade, assumia a prefeitura da Serra pela primeira vez, após vencer a eleição no ano anterior com 51,97% dos votos. Naquele momento, havia a esperança de que a Serra encontrasse seu rumo como cidade.
Para se ter uma ideia, em maio de 1997, a dívida total da Prefeitura no início daquele ano era de cerca de R$ 40 milhões, acumulando cinco meses de salários atrasados e parcelas milionárias já vencidas de empréstimos junto ao Banco do Brasil e Banestes, além de outras dívidas. Esse montante significava quase metade de todo o orçamento da Prefeitura naquele ano.
Para piorar, o Governo Federal instituiu a Lei Complementar nº 87, no final de 1996, conhecida como Lei Kandir, que isentou do pagamento de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) sobre as exportações de produtos primários e semielaborados. Como efeito imediato na Serra, a Lei Kandir desonerou a carga tributária da CST e mergulhou a Serra em mais uma crise de arrecadação, pois a empresa estava entre as principais pagadoras de impostos da cidade.
Paralelamente, os chamados marajás tinham tentáculos de poder espalhados por toda a Serra. Tratava-se, na verdade, de perigosos servidores públicos que, nos anos anteriores, realizaram diversas manobras escusas para aumentar seus salários mensais. Uma lista que havia vazado um ano antes revelou que havia servidores que recebiam até R$ 300 mil por mês, em valores corrigidos para os dias atuais. Eram pessoas perigosas em uma Serra que, há poucos anos, lamentava o assassinato do então prefeito José Maria Miguel Feu Rosa. Vidigal sabia com quem estava lidando e precisava chegar à prefeitura escoltado.
A cidade vivia um colapso múltiplo: desde a ausência de cemitérios para enterrar seus moradores até o colapso na saúde pública, educação e segurança. A Serra era a “cidade-vergonha” do Espírito Santo, um município que, apenas 3 décadas antes, tinha 17 mil habitantes em uma economia agrícola. A cidade se viu no furacão de um dos processos de migração populacional mais radicais do Brasil, impulsionado pelo capital internacional instalado na Ponta de Tubarão, o que trouxe uma nova lógica de ocupação urbana, sem que o Governo Federal e Estadual auxiliassem no crescimento.
E foi com todo esse pano de fundo que o jovem médico recebeu a missão da população de reconstruir a Serra. Para isso, ele precisava de uma equipe à altura desse desafio. Logo no primeiro momento, Vidigal reconheceu em um jovem economista, de apenas 32 anos, a capacidade de auxiliá-lo nessa tarefa: Audifax Barcelos. A história, com suas nuances, revelaria que aquele economista faria muito mais do que apenas auxiliar Vidigal, mas protagonizaria com ele o ciclo político mais exitoso da história da Serra. Ciclo este que se encerrará neste ano de 2024, após 28 anos de trabalhos dedicados à cidade mais complexa do Espírito Santo.
Desde a eleição de 1996, na urna de votação para prefeito da Serra, sempre esteve o nome de Sérgio Vidigal, Audifax Barcelos ou de ambos. No entanto, no próximo dia 26 de outubro de 2024, isso não mais ocorrerá. O segundo turno desta eleição será protagonizado por Weverson Meireles e Pablo Muribeca, encerrando assim o ciclo de Audifax e Vidigal.
Nestes 28 anos, a Serra enfrentou desafios retumbantes em um processo de crescimento populacional que nunca cessou. Para avançar, a cidade precisou “trocar o pneu do carro em movimento”. Como se sabe, a aliança política entre Audifax e Vidigal se rompeu com o tempo, mas ambos seguiram trabalhando pela Serra. O grande mérito dividido pelos dois é que, durante seus mandatos à frente da Prefeitura, a percepção do serrano em relação a si mesmo mudou.
Muito mais do que as dezenas de escolas, creches, unidades de saúde e UPAs que foram construídas, ou de terem transformado a Prefeitura da Serra na maior prestadora de serviços entre todas as cidades capixabas, Audifax e Vidigal ressignificaram a identidade dos serranos. Pode-se criticar a saúde na Serra? Claro, mas foi esse sistema, praticamente reinventado pela dupla, que hoje realiza 1,5 milhão de atendimentos por ano. Pode-se criticar a educação? Evidentemente, mas foi esse sistema, também reinventado pela dupla, que hoje atende 77 mil alunos, garantindo segurança alimentar e ensino de qualidade. Pode-se criticar a segurança? Sem dúvida, mas foi esse sistema, reconstruído pela dupla, que ajudou a tirar a Serra da liderança nos índices de violência.
Faz parte da democracia haver críticas a quem está no poder, mas negar o que a Serra era no passado e o que é no presente é, de certa forma, negar a própria identidade como serrano. Em um passado recente, ser serrano era motivo de constrangimento, piadas e até preconceito. Isso mudou radicalmente nos últimos 20 anos. Essa é a essência do legado iniciado por Vidigal e continuado por Audifax, em uma lógica de revezamento: a substituição da vergonha pelo orgulho de ser serrano. Embora haja uma intensa rivalidade entre Vidigal e Audifax, essa disputa não foi plenamente absorvida pela população, que os vê não como figuras isoladas, mas como partes de um projeto conjunto.
Ainda que se possam apontar falhas específicas, a visão geral é a de um projeto extremamente bem-sucedido. Evidentemente, ciclos chegam ao fim, mas a longevidade política de ambos na Serra fala por si só sobre os resultados alcançados. Afinal, ninguém os elevou à prefeitura por quase 30 anos senão a própria população. E a Serra não está onde está por acaso. Por isso, a este ciclo político vitorioso, que fez a Serra dar certo e que entrará para a história de uma das cidades mais antigas do Brasil, deixamos o nosso muito obrigado.
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