SALVADOR NOGUEIRA
Um grupo internacional de pesquisadores com diversos participantes brasileiros descobriu que Quaoar, um dos grandes objetos de grande porte orbitando além de Netuno, tem um anel. O achado sugere que essas estruturas devem ser bem mais comuns do que se imaginava antes e põe em xeque a compreensão das condições que permitem que elas se formem.
Quaoar é um dos grandes objetos conhecidos que residem no chamado cinturão de Kuiper, onde também se localiza Plutão, o maior deles. Com estimados 1.110 km de diâmetro, ele tem a metade do tamanho do “primo” famoso.
Provavelmente também se trata de um planeta-anão, mas a União Astronômica Internacional (a “Fifa” da astronomia) não o classifica dessa maneira, porque uma das condições para receber o nome é ter atingido equilíbrio hidrostático (traduzindo do cientifiquês, ser aproximadamente esférico). O trabalho dos cientistas começou justamente com este objetivo: tentar determinar a forma de Quaoar.
Observações da luz refletida do objeto não são muito úteis para isso. Como ele é relativamente pequeno e distante, mesmo nossos melhores telescópios não revelam detalhes de sua forma. Quaoar aparece apenas como uns poucos pixels acesos, mesmo na melhor imagem. Para contornar a dificuldade, os astrônomos exploram fenômenos conhecidos como ocultações.
A coisa se dá quando a órbita do objeto o faz transitar à frente de uma estrela mais distante, bloqueando temporariamente sua luz. O tempo de bloqueio indica o tamanho do astro. E se esse bloqueio é medido de vários pontos da Terra, é como medir várias seções paralelas, cada uma com seu comprimento. Juntas, podem permitir a criação de um modelo aproximado da forma.
Ocultações, contudo, são eventos raros e difíceis de observar. Para o atual trabalho, publicado na edição desta semana da Nature, os pesquisadores contaram com dados de quatro ocultações diferentes produzidas por Quaoar, ocorridas em 2 de setembro de 2018, 5 de junho de 2019, 11 de junho de 2020 e 27 de agosto de 2021.
Os cortes transversais ainda não permitiram determinar a forma (trabalho que segue em andamento), mas revelaram algo ainda mais interessante: a presença de um anel em torno do astro, orbitando a cerca de 3.545 km da superfície –mais perto que a única lua conhecida de Quaoar, Weywot, que orbita mais longe, a 12.700 km do solo do potencial planeta-anão.
O anel se torna detectável por produzir ele mesmo rápidas ocultações da estrela de fundo, e a partir dos cortes transversais foi possível modelá-lo. Curiosamente, ele revela um padrão irregular, com regiões mais densas e outras menos densas, e os pesquisadores esperam uma composição por pedras de vários tamanhos, indo dos micrômetros a um quilômetro de diâmetro.
Igual, mas diferente
Já vem se consolidando a ideia de que anéis são estruturas comuns no Sistema Solar exterior, província dos planetas gigantes gasosos. Júpiter, Saturno, Urano e Netuno os têm, e recentemente ocultações revelaram que o objeto Cáriclo tem dois anéis.
Trata-se de um astro com cerca de 250 km de diâmetro que orbita entre Saturno e Urano e é membro de uma população conhecida como centauros (são essencialmente objetos originários do cinturão de Kuiper, localizado além de Netuno, que acabaram atirados para dentro do sistema e se realocaram na região dos planetas gigantes).
Por sinal, a descoberta, divulgada em 2014, foi feita pelo mesmo grupo do atual achado, também com liderança brasileira, e os dois anéis foram provisoriamente batizados de Oiapoque e Chuí. Em 2017, foi descoberto que o planeta-anão Haumea também tem um anel.
A grande diferença desses para o novo achado é que até então praticamente todos os anéis já vistos no Sistema Solar, nos planetas gigantes ou em outros objetos menores, ficavam próximos ou dentro de uma linha imaginária a partir da qual efeitos gravitacionais de maré impedem a preservação de objetos de grande porte –e por isso mesmo se tornam ambiente propício para a formação de anéis.
O de Quaoar está muito além dessa fronteira, conhecida como limite de Roche, o que, em resumo, significa que, pelas expectativas dos astrônomos, ele deveria se coalescer para eventualmente formar luas. O anel está a 4.100 km do centro do sistema, e o limite imaginário estaria a 1.780 km.
“O principal resultado deste trabalho é a descoberta de um anel denso além do conhecido limite de Roche”, diz Bruno Morgado, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e primeiro autor do estudo, que conta com 59 autores de 14 países, dentre os quais pesquisadores do Observatório Nacional (ON), do Laboratório Interinstitucional de e-Astronomia (LIneA), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
“Pela primeira vez encontramos um contraponto a essa teoria que vem sendo utilizada desde 1850. Essa descoberta nos revela que o processo de formação de satélites deve ser mais complexo do que previamente imaginado e que precisamos entender como o anel de Quaoar é estável tão longe dele, quais os efeitos que permitem que ele não esteja se tornando uma lua.”
Uma possibilidade é a de que ele de fato esteja formando um satélite natural, ou seja, que estejamos diante de um anel apenas recentemente formado por algum evento de colisão e que ainda irá coalescer para formar uma lua.
“Porém essa hipótese é muito improvável”, explica Morgado. “Um anel além do limite de Roche se tornaria um satélite em tempo da ordem de poucas dezenas de anos. O que faz com que seja extremamente improvável, levando em conta a idade do Sistema Solar [4,6 bilhões de anos], que estejamos na hora certa e no lugar certo para observar esse evento.”
Claro, improvável não é impossível. Por isso, será importante continuar a observá-lo, com futuras ocultações, para ver como evolui. “Se de fato for verdade que demos uma sorte incrível, as mudanças serão claras [em novas observações]”, diz Morgado. “O anel irá desaparecer, e o que restará será apenas uma lua de alguns poucos quilômetros de raio.”
Mais intrigante ainda será se o anel não sumir –como apostam os pesquisadores. Novas medições ajudarão a mapeá-lo com mais precisão e quem sabe ajudar a esclarecer um de seus mistérios: ele é bastante irregular, com regiões mais densas e espessas e outras mais estreitas e discretas.
“Provavelmente os mesmos mecanismos dinâmicos que fazem com que o anel seja estável fora do limite de Roche devem estar influenciando no formato e na estrutura desse anel. Apenas com mais modelos dinâmicos e mais observações seremos capazes de compreender isso.”
Fato é que o achado, apontando a existência de anéis até onde eles não eram esperados, sugere que há muito mais deles lá fora esperando por serem encontrados. Para Morgado e seus colegas, é um prato cheio. “Quaoar é o terceiro exemplo de anel em torno de um pequeno corpo em nosso Sistema Solar, e é improvável que esse seja o número final. Com melhores equipamentos, novas câmeras e telescópios melhores, com certeza seremos capazes de descobrir outros anéis. E agora devemos procurar não só na região esperada, dentro do limite de Roche, mas também fora dessa região.”