Como previsto, a implantação do novo trecho da BR 101 na Serra, o Contorno do Mestre Álvaro, começa a estimular ocupações urbanas ao longo do trecho de 18,9km de extensão da via, cujas obras estão em andamento com previsão de serem concluídas até o final do ano. Com isso, a especulação imobiliária já é percebida em algumas localidades às margens da futura rodovia. Desde os primeiros aterros do início das obras ainda em 2017, Tempo Novo vem percorrendo com frequência todo o traçado da futura pista. E em 2022 encontrou uma série de situações.
Entre o presídio do Queimado e a região de Garanhus, por exemplo, um terreno rural recebeu aterro, terraplanagem e muro visando algum tipo de uso não ligado à produção agropecuária. Intervenções que obtiveram licença da Secretaria Municipal de Meio Ambiente da Serra (Semma) de nº 9272/2021, conforme placa afixada no local. Ou seja, fisicamente a área foi preparada para receber galpões para atividade logística ou industrial, por exemplo. Ou ainda algum projeto residencial.
Noutro ponto, este próximo ao futuro viaduto de ligação entre a BR 101 e a estrada de Garanhus, placas de uma imobiliária com atuação em diversos municípios da Grande Vitória oferece áreas de 10 mil m2, porção inferior aos parcelamentos típicos para uso rural.
Seguindo na direção norte, já na localidade de Muribeca, é possível ver um processo de parcelamento de terras rurais em chácaras e a construção de diversas casas num dos morros da região.
Polos industriais
Nos dois extremos do Contorno do Mestre Álvaro há polos industriais e de logística com empresas já instaladas. E com estoque de terras disponíveis para novos projetos. Ao sul, no entrocamento do Contorno do Mestre Álvaro com o Contorno de Vitória, existe o Pólo Piracema, que possui infra-estrutura e já é reconhecido e licenciado pelo município.
Perto do Piracema, há o Polo Jacuhy. Porém este não tem infraestrutra, não tem reconhecimento oficial do município e, por isso, não possui licença ambiental como polo. Neste polo ‘informal’ já existem duas beneficiadoras de rochas ornamentais, uma recicladora de entulho, uma processadora de rejeitos siderúrgicos do Complexo de Tubarão, uma concreteira e um galpão que está servindo de escritório e almoxarifado para as empreiteiras que estão fazendo as obras do Contorno do Mestre Álvaro. No Jacuhy sequer há pavimentação e rede de drenagem.
No outro extremo do Contorno do Mestre Álvaro, perto na localidade de Chapada Grande, há o pólo industrial Serra Norte, que não foi consolidado na Prefeitura e nem no respectivo cartório de registro de imóveis. Os proprietários vendem como área rural e quem compra, faz a conversão para urbana e constroem a sua planta industrial ou logística, já que o PDM local permite projetos dessa natureza. O Serra Norte fica no entroncamento do novo trecho da BR 101 com o atual, após o bairro Belvedere e o posto da PRF. Após a obra da nova via, novas terraplanagens em terrenos marginais à rodovia surgiram, indicando aquecimento imobiliário puxado pela demanda de mais projetos de logísticos ou industriais na região.
Alagamentos, acessos e PDM
Grande parte do traçado do Contorno do Mestre Álvaro passa por áreas alagadas permanentemente ou sujeitas a inundação em períodos de chuva. Sobretudo na porção sul, junto ao Piracema e ao Jacuhy, onde inclusive um trecho extenso da pista está sendo construído sobre elevado para permitir a drenagem. Informações de fontes ligadas ao mercado imobiliário da Serra apontam que os proprietários de terras – inclusive nas áreas alagadiças – desejam parcelar e negociar os imóveis para ocupações urbanas.
Resta saber se o município permitirá, pois o atual Plano Diretor Municipal (PDM) veta ocupações urbanas nesses locais. No entanto o PDM está em revisão pelo executivo e há expectativa de que seja apresentadas propostas de mudanças ao legislativo assim que a Câmara voltar do recesso, em fevereiro.
E se porventura a Serra afrouxar as regras para ocupação dos alagados do Mestre Álvaro, ainda haverão outros três desafios para quem pretende vender áreas visando ocupação urbana: o primeiro deles é garantir a macrodrenagem da região, que se mal feita, pode piorar as enchentes em bairros como Central Carapina, José de Anchieta II, Jardim Tropical e nas áreas já ocupadas por empresas nos polos Jacuhy, Piracema e TIMS.
O segundo desafio é o acesso desses terrenos à nova pista, que ficará elevada. Vale ressaltar que acessos laterais demandam aprovação de projetos junto ao Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT), órgão responsável pelas rodovias federais.
O terceiro desafio refere-se à faixa não edificável desses terrenos às margens da rodovia, o que implica diretamente na área aproveitável dos mesmos. Pela regra federal, essa distância mínima é de 15 metros. Porém, uma resolução federal de 2020 delegou aos municípios a possibilidade de reduzir essa faixa para 5 metros. Contudo, é preciso para isto que seja criada regra municipal específica.
Vale lembrar que à exceção de alguns pontos nas extremidades sul e norte do Contorno do Mestre Álvaro, o restante do traçado encontra-se em zona rural conforme o macrozoneamento do PDM da Serra em vigor.
Região de sensibilidade ambiental e corredor ecológico
Além de cortar quilômetros de áreas alagadas aos pés do Mestre Álvaro ao sul e, mais ao norte, as nascentes do Ribeirão Juara, que forma a lagoa de mesmo nome, a nova rodovia também impactou o corredor ecológico Duas Bocas – Mestre Álvaro.
Trata-se de uma região que liga florestas da Reserva Biológica de Duas Bocas (a maior da Grande Vitória) em Cariacica, matas do rio Santa Maria na região do Queimado, aos bosques nativos que ainda cobrem parte do Mestre Álvaro. Um dos últimos lugares que permitem o deslocamento de animais nativos da mata Atlântica entre as montanhas capixabas e o litoral, na Grande Vitória.
Por esta razão o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema) exigiu a implantação de passagens de fauna sob a pista, para evitar o atropelamento dos bichos que circulam entre essas reservas ambientais. Nas vezes em que esteve nas obras, Tempo Novo constatou a implantação de algumas dessas passagens de fauna.
Urbanista alerta para risco de alagamentos generalizados e crescimento desordenado
Arquiteto urbanista que atuou em diversos projetos imobiliários na Serra ao longo de 14 anos, Oswaldo Afonso, defende que o município seja bastante criterioso caso decida permitir ocupações urbanas ao longo do Contorno do Mestre Álvaro. Especialmente em relação a aterro nas regiões alagadiças na ponta sul do via, próximo ao Contorno do Vitória.
“É uma região que recebe águas vindas do Mestre Álvaro, da região do Queimado e parte da Grande Carapina e José de Anchieta. Tem ainda as águas da bacia do rio Santa Maria, que vem de um território extenso, que se inicia nas montanhas capixabas. No caso das proximidades do Contorno do Mestre Álvaro, já há problema sério de drenagem ali, pela águas que fluem pelo Canal dos Escravos para a baía de Vitória. Há gargalo na ponte de acesso ao Piracema, na passagem sob a ferrovia Vitória-Minas e sob a BR 101. Imagine se libereram aterros ao longo do Contono do Mestre Álvaro? Vai virar um grande dique represando esse aguaceiro”, alerta Oswaldo.
Veja abaixo vídeo feito pela reportagem em dezembro do ano passado mostrando a situação do traçado da futura pista, que neste trecho será sobre um elevado, e dos terrenos vizinhos.
O urbanista lembra que grande parte da área ao longo da futura via é rural, segundo o PDM, e se alguém tiver a intenção de vender terrenos rurais para compradores que venham a iniciar processos de ocupação urbana, estará caracterizada ilegalidade.
“A lei federal 6.766/79 orienta esse tema e prescinde de regulamentação local. Ela prevê que um loteamento, por exemplo, seja entregue com toda infraestrutura – drenagem, pavimentação, esgoto, iluminação e que haja a doação de parte da área ao município para implantação de projetos viários complementares, praças e outros equipamentos públicos como escolas, postos de saúde, praças. É necessária inclusive uma nova lei municipal para aprovar o loteamento. Se a prefeitura liberar um loeteamento sem cumprir tais requisitos, poderá incorrer em improbidade administrativa. E se um cartório registrar terrenos como urbanos nessas condições, pode-se caracterizar estelionato”, adverte.
Jacuhy e Piracema
Oswaldo acrescenta que caso ocupações sejam para polos logísticos e industriais, também é preciso cuidado. “Um exemplo é o Jacuhy, que nem podemos chamar de polo porque não é legalizado. Os donos começaram a aterrar terrenos nas áreas mais perto da ferrovia e ao longo do Contorno de Vitória e vendê-los aleatoriamente. Hoje o local não tem sequer pavimentação e drenagem e, em períodos de muita chuva, alagam parte das empresas que se instalaram ali” , explica.
A reportagem esteve no Jacuhy no dia 5 de dezembro de 2022, ocasião em que as contínuas chuvas transformaram a região num imenso lago. Situação que foi agravada pelo rompimento do dique do rio Santa Maria na altura da Fazenda Larica, próximo à captação da água da Cesan. Na oportunidade, parte das empresas do Jacuhy foi inundada. Inclusive funcionários da obra do Contorno do Mestre Álvaro não conseguiam acessar o galpão que serve como almoxarifado e escritório das empreiteiras contratadas para a construção.
Em meados da década de 2000, Oswaldo conta fora contratado para fazer o projeto urbanístico do Polo Piracema. “Lá os proprietários também iniciaram aterrando e vendendo terrenos isoladamente. Aí o Ministério Público foi em cima e obrigou a implantação de um projeto urbanístico e de obtenção de licença ambiental. Assim foi feito. Então foi adequada toda a área, feitas ruas amplas e com sistema de drenagem”, conclui.