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Editorial | A maior ameaça à vida e ao desenvolvimento da Serra já está acontecendo

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Crédito: Edson Reis.

Muitos são os desafios que a Serra tem pela frente; alguns mais visíveis e outros menos. Entretanto, o maior deles está avançando a passos largos. Trata-se da disponibilidade de água em condições seguras para o usufruto humano. De janeiro a fevereiro, a Serra enfrentou um período agudo em que faltou água por longos períodos e, quando vinha, chegava às casas da população com diferentes níveis de turbidez.

Tal problema não é pontual, muito pelo contrário, é crônico, com fases mais e menos agudas. No primeiro momento, a pressão da sociedade recai sobre a Cesan, que tem grande parcela de responsabilidade. Entretanto, o problema vai muito além dos limites que tangem a estatal. É uma questão de Estado, que está avançando ano após ano e pode frear o desenvolvimento da Serra; e em um cenário mais extremo, até mesmo causar desmonte de setores econômicos, com impactos também em várias outras áreas da sociedade.

Como a Cesan disse em 2021 e publicado pelo Jornal Tempo Novo, o Rio Santa Maria da Vitória “está morrendo”. Essa afirmação deveria ter sido levada a sério no primeiro momento, mas não foi. A empresa responsável pelo abastecimento disse que o rio, utilizado para alimentar de água 700 mil pessoas (além de abastecer o maior arranjo industrial do Espírito Santo), está simplesmente morrendo. Aprendemos nas primeiras fases colegiais: água é vida.

E tudo é muito visível. Registros da época em que a freguesia de São José do Queimado era um grande entreposto comercial no século 19 demonstram que, pelo Rio Santa Maria, desciam canoas carregadas com 9 toneladas de produtos agrícolas e mantimentos. Atualmente, há dúvidas se uma pequena embarcação sem carga consegue sair da região montanhosa e chegar até a Estação Ecológica do Lameirão, sem agarrar em pedras ou montes de terra.

O processo de degradação do rio está muito acelerado; trata-se da principal fonte de água da Serra, que abastece também parte de Cariacica, Fundão e a porção continental de Vitória. Se o rio está morrendo, assim como disse a Cesan em 2021, tudo o que a empresa está fazendo é paliativo. A Estação de Tratamento de Água de Carapina (ETA V) foi construída em 1983. Em 2021, o governador Renato Casagrande esteve na Serra e anunciou investimentos de modernização da ETA V com mais de R$ 60 milhões previstos para serem entregues em agosto de 2024. A capacidade de tratamento da estação é de 2,5 mil litros por segundo. Mesmo com esses investimentos, a capacidade será a mesma, já que os investimentos dizem respeito às tecnologias para melhorar a qualidade do tratamento e não ampliá-lo.

No que pesa a importante iniciativa do Governo do Estado em investir na melhora da qualidade do abastecimento, entretanto, se não tiver rio, estação de tratamento não interessa. A captação ocorre na divisa entre Cariacica e Serra pela rodovia do Contorno de Vitória, onde foi construído um barramento. Lá são aplicados produtos químicos (processo conhecido como flotação) para que o material sólido (barro) forme flocos maiores e seja filtrado. Mas quando tem mais barro do que água, a captação é suspensa.

Não é que isso irá acontecer… na verdade, isso já vem acontecendo seguidamente e cada vez mais frequentemente e intensamente. E olha que estamos falando da ETA V, que muitas vezes precisam cobrir a Estação de Reis Magos, que desde sua inauguração (2017) nunca funcionou como previsto, já que a vazão do local em que é captado não é suficiente. Prevista para captar 500 litros por segundo, há informações de que Reis Magos não tem conseguido atingir os 200 litros/segundo captado.

Atualmente, a Cesan atende a 114 mil imóveis na Serra, e a demanda vai continuar em escalada. E veja, estamos falando de água para uso doméstico; há também a utilização da água para fins comerciais. Até aqui, nem falamos sobre aumento de capacidade de água captada. Estamos abordando somente o investimento que vai permitir à Cesan dar conta de tratar a mesma quantidade da qual ela já fornece. Há algum tempo, a população reclama que a água da Cesan está chegando com gosto forte e tem causado mal-estar. Com a dificuldade de captação de água, a empresa precisa utilizar mais produtos químicos, alguns dos quais cancerígenos. Este texto não vai nem entrar nesse assunto, pois merece uma abordagem própria. Mas dá para explicitar que é a questão da água tange a viabilidade de ocupação urbana da Serra, que inclui a saúde pública.

Obviamente, a Cesan tem culpa. Um deles é se submeter à vassalagem de governos e não apontar os problemas que começam muito antes da captação. A bacia do Rio Santa Maria da Vitória está em estado crítico e avançado de degradação. O desmatamento da região serrana do Espírito Santo ocorre velozmente e muitas vezes com anuência dos órgãos de licenciamento e autorização. Paralelamente aos investimentos no tratamento de água da Cesan, o governo precisa resolver a qualidade de água bruta que é captada no manancial. O rio está com vazão reduzida anos após anos, com sérios problemas de erosão que carregam toneladas de terra para dentro, assoreando e literalmente matando o rio.

Outra preocupação é o arranjo hortigranjeiro de Santa Maria de Jetibá, onde estão as cabeceiras do rio que abastece a Serra. Sabe-se da importância econômica da região, porém, há controle sobre o que é descartado no rio? Trata-se de uma atividade com intenso uso de veneno agrícola e outros materiais contaminantes em larga escala industrial. O envenenamento do rio e a morte dos nascedouros de água começam lá de cima e vão se aprofundando durante o curso d’água. A represa de Rio Bonito é outra questão emblemática; em 2015, o local que era uma represa destinada à produção de energia elétrica se tornou forçadamente uma represa exclusivamente para abastecimento humano. A medida teve caráter emergencial diante da severa crise hídrica que o Espírito Santo passava. Ocorre que a barragem, alimentada pelo rio Santa Maria da Vitória, foi construída com outra finalidade (hidrelétrica). Ao transformá-la em represa para abastecimento, um conjunto de regramentos e critérios técnicos foram deixados de lado. Há dúvidas quanto à qualidade de água vinda da represa, já que existem relatos de eutrofização da lâmina d’água, sinal clássico de acúmulo de poluição.

Item importante também é entender como está a destinação de água para a Vale e ArcelorMittal. Praticamente metade dos 2,5 mil litros por segundo captados no rio vai para o Complexo de Tubarão. Este sempre foi um assunto meio obscuro. Será que a mesma água barrenta que chegou (e continua chegando) para a população chegou também ao Complexo de Tubarão? Logicamente, a atividade econômica das duas empresas é de absoluta importância para a saúde financeira do Espírito Santo; entretanto, o assunto é água, que depois do oxigênio é a condição que viabiliza a vida. Não dá mais para o Complexo de Tubarão se esconder atrás de sua influência na economia capixaba e deixar a Serra e parte de outras cidades reféns de uma situação que se agrava diariamente. Aqui, cabe fazer uma ressalva: em 2021, a ArcelorMittal Tubarão inaugurou a maior planta de dessalinização de água do mar do Brasil para fins industriais. Foram investidos R$ 50 milhões para dessalinizar 140 litros/segundo de água. Na época, a siderúrgica declarou que o projeto tem como objetivo substituir parte do volume consumido do Rio Santa Maria da Vitória. A título de dimensionamento, esse volume de água corresponde a um abastecimento diário para uma população de 70 a 80 mil pessoas. Ou seja, se a Arcelor não tivesse inaugurado essa planta em 2021, a situação seria ainda mais alarmante. Por sua vez, há alguns anos, a Vale não anuncia absolutamente nada estruturante no que diz respeito ao consumo de água do Rio Santa Maria da Vitória. É importante entender e dimensionar o real consumo de água cuja fonte seja o rio e saber objetivamente se as empresas são privilegiadas com água em melhores condições de tratamento e se desfrutam de baixas tarifas. Pois se estão pagando consideravelmente menos por um produto consideravelmente melhor do que aquele que chega à residência dos moradores da Serra, existem implicações legais graves.

Veja então que o tratamento de água em si, realizado pela Cesan, é somente parte do sistema que vai muito além da própria empresa. Antes de tudo, o rio precisa ser recuperado. Caso contrário, de que adianta investir em estação de tratamento se a água bruta que chega é cada vez pior e em menor volume? Além do Governo do Estado, que deveria liderar essas iniciativas, as prefeituras precisam se integrar no tema. Se a qualidade de água que chega na Serra é diretamente impactada pela economia hortigranjeira de Santa Maria de Jetibá ou pelos desmatamentos no curso do rio, logo, portanto, a Serra precisa participar e dialogar com as cidades que fazem parte da bacia do Santa Maria; e não são muitas, o rio percorre pouco mais de 120 km desde sua nascente até sua foz na Baía de Vitória. Acima do ponto de captação na Serra estão Santa Maria de Jetibá, Santa Leopoldina e Cariacica. As cidades que dependem do rio para abastecimento humano e os municípios que dele fazem parte para atividade econômica voltada à produção de alimento e que utilizam o leito do rio para descarte de efluentes tanto os domésticos quanto oriundos da produção agrícola, precisam sentar à mesa para delimitar ações coordenadas.

Veja, se a Serra é impactada em decorrência de um hipotético licenciamento dado pela prefeitura de Santa Maria de Jetibá, porque a Serra não tem nenhuma gerência do processo? Os órgãos estaduais dão conta de exercerem essa função na integralidade? A abordagem a respeito do tema água precisa ser muito mais ampla, o que não exime a Cesan de parte significativa de responsabilidade, até porque, a esse respeito, em termos financeiros, é a que mais lucra. Passou da hora da Serra, em conjunto com o Estado, promover estudos sobre dessalinização de água para abastecimento no município; cobrar e executar o desassoreamento do Santa Maria; políticas de reflorestamento e recuperação ambiental; preservação das nascentes e das cabeceiras do rio; diminuição do índice de desperdício de água durante o processo de captação até o fornecimento ao usuário final – estima-se que esse problema represente algo em torno de 40% de perda de água. Repactuar a utilização de água no Complexo de Tubarão e cobrar das empresas, em especial da Vale, medidas de contenção de consumo e outras fontes de abastecimento, assim como a Arcelor fez em 2021. Além, é claro, da continuidade do serviço de saneamento, que vem sendo executado em parceria privada desde 2015 na Serra, que avançou no quesito quantidade de efluentes coletados e agora precisa demonstrar resultados e investimentos no que tange à qualidade do esgoto tratado e descartado.

Diante da expressividade da Serra e da necessidade, já que é a mais interessada, a cidade deveria liderar os trabalhos do comitê de bacia do rio Santa Maria da Vitória e por lá fazer fluir as pautas de combate à escassez hídrica e as políticas de recuperação do rio.

A crise hídrica na Serra já atinge o elo mais frágil: o povo, que diariamente, em especial nas comunidades mais periféricas e populosas, como Feu Rosa, José de Anchieta, região de Serra Sede e a zona oeste de Jacaraípe, já sofrem com a contínua condição de sub-abastecimento, ficando dias sem água. E quando chega, em qualidade duvidosa. Quanto mais escassa, sedimentada e poluída a água bruta é captada, mais produtos químicos são utilizados no processo de tratamento, muitas vezes incorrendo no risco de causar problemas futuros crônicos e em larga escala na saúde da população. Isso já vem ocorrendo. A escassez hídrica pode causar fuga de investimento e retração econômica, uma vez que empresas, serviços e indústrias são consumidoras massivas de água. Para quem anda na Serra, talvez tenha observado que estabelecimentos de pequeno porte já precisaram implantar reservatórios de água cada vez maiores, cisternas de 5 mil litros são cada vez mais comuns na paisagem urbana da cidade.

Sem contar as imensas torres, que a cada vez ficam maiores, destinadas a estocagem em larga escala de água nas empresas, supermercados e condomínios, por exemplo. A escassez hídrica já faz parte do visual cotidiano da Serra. Não por coincidência, em Jardim Limoeiro existe um enorme polo de empresas do segmento de caminhão-pipa. Já está acontecendo. Tudo isso em um cenário de crescimento populacional acelerado e maior demanda por serviços públicos, em especial pós-pandemia. Quando se olha o processo de ocupação urbana da Serra, é assustador pensar que as estimativas apontam para um quantitativo populacional de 1 milhão de habitantes em 2050, pouco mais de 25 anos. Se continuar neste ritmo, teremos um problema de ordem civilizatório, já que sem água não prospera vida alguma.

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