Joana d’Arc Batista Herkenhoff é escritora Residente do Centro Cultural Eliziário Rangel. Doutora em Letras pela Ufes, Professora, ministra cursos, oficinas literárias e atua na assessoria em escrita literária e acadêmica. Divulga seus poemas na conta de poesia no Instagram @aloucadeespanha.
entro e saio
dentro
é só ensaio
Paulo Leminski
Nesse carnaval, em que a gente concentra, mas não sai, ao som de melancólicas marchinhas, tênues eflúvios de esperança, pranteio queridos e tantos outros idos, não me resigno, sigo, forçando o pensamento, cuidando do coração: abuso das máscaras e guardo a verdadeira alegria pra quando o carnaval chegar.
No toca-discos, recuperado pelas saudades, toca “Chuva suor e cerveja (rain sweat beer)”, que compõe o álbum Muitos carnavais (de 1977), de Caetano Veloso, que sugiro, também coloquem no prato, pois nos serviremos de 12 canções de Carnaval, dentre elas, duas regravações, os sambas, “Guarde seu conselho” de 1959, de Luis de França, Alcebíades Nogueira, e “Hora da razão”, de J.Luna, Batatinha, de 1973, músicas boas para intervalo da folia doméstica, ou mesmo para a ressaca do dia seguinte.
Em 1977, ano de lançamento do disco em que está a canção — importante não esquecer — vivíamos sob as botas do General Ernesto Geisel que, parece mentira, no dia primeiro de abril, fechou o Congresso Nacional. Nesse ano, é aprovada a Lei do divórcio (algum aceno de abertura?) e Rachel de Queiroz é a primeira mulher eleita para a Academias Brasileira de Letras. É o ano da morte de Clarice Lispector, que tinha escrito “Restos do Carnaval”, publicado em Felicidade Clandestina (1971), confirmando a atração exercida pelo Carnaval, já tendo fascinado escritores como Manuel Bandeira, João do Rio e Rachel de Queiroz, com seu “quinhão de alegria e loucura”.
No disco, além do “aspecto paródico-carnavalesco” e o “aspecto inventivo-construtivista”[1] já atribuídos aos tropicalistas por Augusto de Campos, observamos o diálogo com a literatura e a exploração de seus recursos de linguagem, em “Chuva suor e cerveja (rain sweat beer)” e “Atrás do trio elétrico” (Caetano Veloso). Nessa última, a conversa com a literatura se dá de modo mais evidente, por meio do diálogo intertextual com outro baiano eloquente, o “Poeta dos escravos”, Castro Alves, que no poema, “O povo ao poder”, exorta: “A praça é do povo/Como o céu é do condor/É o antro onde a liberdade/
Cria águias em seu calor”. A canção de Caetano atualiza a máxima de liberdade de Castro Alves: “A praça Castro Alves é do povo/Como o céu é do avião/Um frevo novo, um frevo, um frevo novo/Todo mundo na praça e muita gente sem graça no salão”, adicionando uma pitada de crítica ao confinamento burguês do carnaval dos salões.
Em “Chuva suor e cerveja (rain sweat beer)”, canção de tempos e espaços, em que o título desconstrói o aforismo de Winston Churchill, “sangue, suor e lágrimas”, destaca-se o aspecto inventivo, pela exploração na letra de recursos gráfico-visuais: Vejamos:
Chuva suor e cerveja (rain sweat beer)
não se perca de mim
não se esqueça de mim
não desapareça
a chuva tá caindo
e quando a chuva começa
eu acabo de perder a cabeça
não saia do meu lado
segure meu pierrô molhado
e vamos embora ladeira abaixo
acho
que a chu-
va aju-
da a gente a se ver
venha
veja
deixa
beija
seja
o que deus quiser
a gente se embala
se embora
se embola
só pára na porta da igreja
a gente se olha
se beija se molha
de chuva suor e cerveja
Como forma para ser vista, o poema-canção desenha no espaço da página os movimentos do par de carnaval, seu encontro e desejo de não se perderem um do outro, a chuva que leva à dispersão e ao ziguezaguear “ladeira abaixo”, o que desorganiza visualmente o poema antes de, ao final, retomar um arranjo mais regular, coincidentemente (?) na porta da igreja.
A construção sonora no plano da linguagem escrita, amplificada no arranjo musical, imprime o ritmo ofegante da corrida dos foliões, promovendo a quebra do verso e o deslocamento da tonicidade das palavras finais dos versos, para promover a rima, rara.
e vamos embora ladeira abaixo
acho
que a chu-
va aju-
Ouve-se a respiração dos amantes na folia, na repetição de sons fricativos, aqueles que produzem um ruído comparável a uma fricção, sons esses representados pelas consoantes, dígrafo: “x” “ch” “j” “g” “v” “s”, potencializados pelos sons oclusivos, aqueles produzidos pela obstrução do ar e soltura em explosão, “b” “p”. que dão a percussão do coração apaixonado no poema.
Mas, paremos por aqui, que é quase quarta-feira de cinzas e não queremos aborrecer o leitor nem correr o risco de entrar pra “família de profetas après coup, post factum”[2], a dos analistas especialistas em spoilers, que podem privar o leitor do prazer da fruição e descoberta. Então, vamos ao disco e brinquemos, em casa, que Carnaval é catarse, suspensão da ordem, ainda que breve, para voltar na quarta-feira, qual fênix, renascidos da cinza.
Link para playlist no Spotify “Ensaio de Carnaval”:
Outras leituras de Carnaval
LISPECTOR, Clarice. Restos de Carnaval. In Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 2020. Disponível em http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/92-ficcao/1806-restos-de-carnaval-,-de-clarice-lispector.html?fb_comment_id=1466033456743241_1466081963405057
RIO, João do. O bebê de tarlatana rosa. In: ESTEVES, L. de O. Contos macabros: 13 histórias sinistras da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2010. p. 203-212. Disponível em http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo/PauloBarreto/obebede.htm.
Referências
VELOSO, Caetano. Caetano Veloso. Seleção de textos, notas, estudos biográfico, histórico e crítico por Paulo Franchetti e Alcyr Pécora. São Paulo: Abril, 1981. p. 69-70 (Literatura comentada).
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo, 1997.
VELOSO, Caetano. Muitos Carnavais. Rio de Janeiro: Polygram, 1977.
[1] VELOSO, Caetanos. Veloso. Verdade tropical. p. 224.
[2] Machado de Assis. Bons dias.
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