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Histórias de quem viveu na antiga vila de Queimado

Segundo relatos os últimos moradores deixaram a localidade no final da década de 80

Por Clarice Poltronieri

Dona Anália é filha de escravo e viveu na região do Calogi. Foto Clarice Poltronieri

Neste fim de semana acontecem vários eventos alusivos à Insurreição do Queimado, cujo o aniversário de 166 anos ocorreu no dia 19. A data é um marco da resistência dos negros no estado. Embora a vila não exista mais, apenas as ruínas, o cotidiano do local e a escravidão estão na memória dos últimos moradores que viveram na região e que hoje moram em outros bairros da Serra.

É o caso de Marilda Luiza da Boa Morte Fraga, que foi moradora de Queimado e tem lembranças de um tempo em que a vila ainda era viva. “Eu era criança quando mudei pra lá com meus pais em uma canoa pelo Canal dos Escravos. Cresci, casei e tive 4 dos meus 12 filhos lá. Moravam umas 20 famílias naquele local que tinha padaria e até uma fábrica de tecidos. As missas eram rezadas na Igreja do Queimado e eu vi muitas. Mas depois que apareceram os Larica e começaram a pressionar o povo para vender os terrenos, todo mundo foi indo embora e a igreja começou a ruir”, narra.

Marilda tem 67 anos e viveu em Queimado há cerca de 30 anos. “Francisco Araújo Dutra, pai de meu marido, era sineiro da Igreja de Queimado e filho do sacristão e meu filho Luiz Carlos seguiu a profissão do avô e se tornou sineiro da Igreja Matriz, na Serra-sede”.

O sogro de Marilda foi sineiro da Igreja de Queimado. Foto Clarice Poltronieri

Outra memória viva daquela época é a moradora de Jacaraípe, Anália Raimundo Santana, de 98 anos, que possui grandes lembranças narradas por seu pai e avó, ex-escravos de uma fazenda em Calogi. A avó chegou da África grávida do pai.

“Meu pai, Raimundo Pinto, era negro bonito e forte e virou escravo de regalia, não apanhava, só tinha que fazer escravinhos. Ele contava que quando ele era jovem, a Princesa Isabel assinou a liberdade e os negros largavam a enxada e iam embora. Foi uma festa só. Mas antes era muito sofrido. Tinha caso de senhor que jogava as crianças na fornalha pra não atrapalhar o trabalho da mãe. Diz que os escravos maltratados pelos senhores jogavam as enxadas em cima deles no dia da liberdade”, relata.

Ela diz que o pai viveu 116 anos e lhe contou muitas outras histórias.

Conheça um pouco da história do local

Em 19 de março de 1849, o Sítio Histórico do Queimado foi palco de uma revolta de escravos. Conta-se que a revolta foi liderada pelos escravos Chico

Tela do artista plástico serrano Valter Assis que retrata a vila do Queimado. Foto: Arquivo TN

Prego, João da Viúva e Elisiário. De acordo com relatos históricos, o frei Gregório Maria de Bene havia prometido liberdade aos escravos em troca da construção da igreja de São José. A promessa não foi cumprida o que gerou a revolta.

Foram chamadas tropas de Vitória e do Rio de Janeiro para conter os rebelados, que foram presos. Elisiário foi um dos poucos que conseguiram fugir da cadeia; João da Viúva e Chico Prego foram açoitados e enforcados, assim como a grande maioria dos revoltosos, que chegaram a trezentos. Hoje, Chico Prego nomeia a Lei de Incentivo Cultural da Serra e tem uma escultura em uma praça, próximo do local onde foi enforcado, em 11 de janeiro de 1850.

A Serra no Canaã de Graça Aranha

O livro do escritor maranhense Graça Aranha, o romance pré-modernista Canaã, de 1902, que narra sobre a imigração alemã no Espírito Santo em seu primeiro capítulo se passa em Queimado. O protagonista Mikau, alemão recém-chegado à colônia de imigrantes europeus, aluga um cavalo e tem como guia um menino negro de 9 anos.

Apesar da obra ser mais ligada ao problema da imigração europeia no Brasil, as descrições de Aranha do capítulo inicial mostram como era a região da Serra naquela época, ainda de cunho rural e com muitas marcas da escravatura, cerca de 50 anos depois da revolta mais marcante da história capixaba.

Caminhada, missa ecumênica e teatro para festejar a data

Como já é tradição na data em que se comemora a Insurreição do Queimado a Serra promove uma série de comemorações.

Neste sábado (21) tem reinauguração da estátua de Chico Prego, na Serra-sede, às 20h. Na sequência, apresentação do Boi Graúna na Igreja Matriz, manifestação folclórica da Serra de um boi de arado que carregava cana de açúcar, café e abacaxi e que brinca com convidados através de música e dança.

No mesmo dia, a meia-noite, acontece a 5ª Caminhada Noturna dos Zumbis, de 18km, que sairá da Igreja Matriz em direção às ruínas do Queimado.

A chegada ao Sítio Histórico está programada para a manhã de domingo (22). No local será celebrada missa Afro Popular e Macro Ecumênica, às 8h30.

Os eventos fazem parte da 16ª Celebração Afropopular Macroecumênica do Queimado que comemora os 166 anos da Insurreição do Queimado. A organização da Prefeitura Municipal da Serra, do Fórum Chico Prego, do Fórum das Entidades Religiosas de Matrizes Africanas da Serra e do Grupo Zumbis Contemporâneos, com apoio do Centro de Direitos Humanos da Serra e da Câmara da Serra.

A Insurreição do Queimado pelo olhar do poeta Teodorico Boa Morte

O poeta serrano Teodorico Boa Morte escreveu o livro Insurreição do Queimado que está em sua sexta edição. Foto Edson Reis

Leitores, curiosos, professores e pesquisadores não confundam Queimado, com a igreja queimada. Queimado uns dos distritos da Serra, onde ocorreu o massacre da Insurreição, um dos maiores gritos de resistências do negro no Espírito Santo.

A igreja queimada pelos negros, “nunca”. Os negros apenas se rebelaram pelos direito de serem livres.

Outra coisa, se você não sabia, nas décadas de 1970 até 1990, a igreja era muito bem cuidada, se celebrava orações no templo, os fiéis veneravam a São José seu padroeiro. Existia um responsável pelos cuidados da igreja, pela estrada e pela conservação do local daquele monumento que hoje está ao Deus dará, como se diz por ai, local de desova, é muito triste para um monumento que tem uma história.

Precisamos ativar memórias, para conseguir fazer entender os valores marcados naquelas ruínas, valores humanos, valor de uma luta, valor cultural, sem dizer o valor turístico, que gera empregos e mostra aos olhos do mundo que as mazelas de um passado ignorante, foi que deu a vida a um progresso de hoje para um Brasil que continua em caminhos pesarosos.

O Grito dos nossos zumbis contemporâneo, Chico Prego, Eliziário, Carlos, João da Viúva e Corcunda.

Insurreição

Do massacre a tirania,
Da inocência a crueldade,
Do sonho de vida livre
A morte foi liberdade.
Dos relatos que se ensinam,
Da história que é viva.
Nem o tempo apagou,

Esta brava ação cativa.
Brava luta por direitos,
Brava força de união,
Brava planta que floresce,
Desta vil insurreição.
Faz brotar em Cada um,
Que luta por vida honrada,
Por direitos e vida livre,
Nos passos da caminhada.
Onde ainda em muitos casos,
A raça negra é vetada.
Ouve-se um grito no espaço,
De Chico, João e os demais,
Mostrando a força da luta,
No túmulo ressuscitado.
Seus gritos bradam justiça,
Na luta que continua…
Dizendo peguem a bandeira,
Foi o símbolo que deixamos
Para a liberdade SUA.

Ana Paula Bonelli

Moradora da Serra, Ana Paula Bonelli é repórter do Tempo Novo há 25 anos. Atualmente, a jornalista escreve para diversas editorias do portal.

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