Em tempos estranhos, em completa anomia social como esculpido pelo sociólogo francês Émile Durkheim, parece ousadia tentar estabelecer o que é e o que não é correto legalmente, isso porque em estado de anomia há uma interrupção das regras que regem os indivíduos em sociedade.
Nesta quinta-feira, dia 25 de março de 2021, o governador Renato Casagrande anunciou a interrupção total do transporte público a partir do dia 28 de março para, segundo ele, “reduzir a aglomeração nos transportes públicos”.
Em tempos normais, o que isso poderia significar no campo do Direito?
Poder-se-ia apontar primeiramente que o transporte público, a partir da Emenda Constitucional de nº 90/2015, passou a ser direito social constitucional, com a inclusão no rol de direitos sociais do artigo 6º da Constituição Federal (CF).
“Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
Tal direito se apresenta como um complemento de um direito muito mais antigo e antecessor, que é o direito à locomoção, esculpido no artigo 5º, inciso XV da CF.
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
XV – é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; (…)”
Soma-se a isso o fato de que somente o Presidente da República, com a aprovação do Congresso Nacional, pode decretar estado de Defesa (art. 136 da CF) ou de Sitio (art. 137 da CF), que são os mecanismos constitucionais legais para a suspensão temporária desses direitos que são direitos e garantias fundamentais.
Assim, temos a inequívoca constatação que no Brasil de hoje impera a total anomia social e jurídica, onde os mais caros direitos e garantias constitucionais estão sendo suprimidos por força de decretos estaduais e municipais que, na hierarquia das leis, amargam o último lugar em grau de importância.
Poder-se-ia afirmar que o que o Governador do Estado do Espírito Santo está fazendo é ilegal, inconstitucional e injusto, mas no quadro atual das coisas, com seus atos sendo expressa ou tacitamente confirmados pelos demais poderes do Estado (Legislativo e Judiciário), e pelo Ministério Público, a quem caberia ser o fiscal da lei, tal afirmação não encontraria eco.
Portanto a conclusão a que se pode chegar é a de que as regras do jogo democrático de direito estão suspensas, não se podendo nem declarar que algo é ilegal, porque não há quem recepcione tal declaração.
Entretanto, utilizando um último suspiro de lucidez e racionalidade é possível apontar que a paralisação do transporte público é imoral, porque afetará principalmente os mais necessitados, os pobres e miseráveis, que sem transporte público terão mais do que seu direito de ir e vir livremente retirado; terão sua cidadania, sua dignidade e seus direitos humanos básicos retirados.