Histórias da Serra

Major Pissarra: Herói da Independência da Serra ou cruel dono de escravo que se suicidou?

Crédito: Divulgação | Ilustração

Herói da Independência da Serra? Fazendeiro bem-feitor e representante dos serranos numa era de dificuldade? Assédio, homicídio e suicídio? Todas essas questões circundam uma das personalidades mais importantes da Serra, mas que teve sua historiografia prejudicada devido aos escassos registros. Apesar disso, na semana da Independência brasileira, o Histórias da Serra não poderia falar de outra pessoa a não ser ele: Major Pissarra.

Neste último 07 de setembro o país comemorou os 200 anos da Declaração de D. Pedro I que pôs fim a era colonial de pilhagens do Império Português; que sugou as riquezas brasileiras e utilizou o suor do nosso povo para manutenção de Portugal, que já estava decadente e acuado pelos franceses.

Diante dessa data memoriosa, o Histórias da Serra decidiu contar a trajetória daqueles que fizeram da Serra, uma cidade independente de Vitória.

Mas vale esclarecer ao leitor: este texto não tem a pretensão de detalhar o ato em si, mas sim de contar a história daqueles que foram os responsáveis diretos pelo acontecimento, em uma mais reportagem de cunho histórica da Coletânea Protagonistas da Serra. Em um segundo momento do ciclo de matérias planejado pela Coluna, os acontecimentos que redundaram na independência da Serra serão esmiuçados.

Com este objetivo, o personagem da vez, Joaquim Pereira Franco Pissarra, mais conhecido em sua época como Major Pissarra foi um controverso serrano, autor da Lei que elevou a Serra a categoria de cidade. Sancionada pelo Governo Provincial em 06 de novembro de 1875, Major Pissarra promoveu uma grande festa na cidade, ocorrida quase um mês depois, no dia 02 de dezembro. A data foi escolhida especialmente para homenagear o então imperador do Brasil, Dom Pedro II, que aniversariava naquele mesmo dia.

O que se sabe sobre Major Pissarra?

Uma das principais ruas da Serra, onde está localizada a Câmara da Serra e o Cartório de Registro de Imóveis da Serra, por exemplo, chama-se Rua Major Pissarra, no Centro da Serra. “Major Pissarra” era o nome popular do fazendeiro Joaquim Pereira Franco Pissarra, que tinha uma extensa fazenda em Chapada Grande (extremo norte da Serra, próximo à praça de pedágio da Eco-101), a fazenda de nome Calugimirim.

Lá, Major Pissarra criou sua família, mantinha serviçais e um grande número de pessoas escravizadas, que trabalhavam nos vários cafezais e cuidavam das juntas de bois do major (antigamente se media a riqueza de um homem pela quantidade de juntas de bois que possuía).

O serrano foi deputado provincial do Espírito Santo por duas vezes: na 19ª Legislatura que vai de 1872 a 1873; e na 20ª Legislatura de 1874 a 1875 (ano em que a Lei que elevou a Serra para categoria de Cidade foi aprovada).

Na época, o país ainda era governado pela família imperial brasileira (se tornaria uma República somente em 1889). Por isso, os estados não tinham autonomia administrativa; e os deputados provinciais exerciam uma função similar aos deputados estaduais, hoje em dia.

Nascido em 1812, Major Pissarra viria a morrer em sua propriedade na Serra, no dia 16 de abril de 1883 (71 anos). A informação foi extraída de arquivos do extinto Jornal ‘A Província do Espírito Santo’, que registrou a morte do Major na edição do dia seguinte (edição de nº 197 de 17 de abril de 1883).

Dados cartoriais pesquisados pela reportagem registram também que aos 34 anos, Major Pissarra teria se casado com Maria Roza da Silva, falecida em 1890, sete anos depois do Major.

Xerifão da Serra tinha sardas no rosto

De acordo com relatos do escritor Valdemir Azeredo, fornecidos ao Jornal Tempo Novo em 2011, Major Pissarra era descrito como um homem troncudo, média estatura, seu corpo e seu rosto eram vermelhos e ele tinha umas manchas na pele parecendo piçarras (pedras de xisto) o que hoje poderiam ser comparados às sardas, por isto, o povo serrano o chamava de Major Pissarra.

Além de militar, ele era tido como uma espécie de xerife da região, um homem que colocava ordem onde chegava, pois naquele tempo não existia delegado pelas redondezas. Segundo documentos cartoriais pesquisados pela reportagem, Pissarra chegou a exercer a função de Major-comandante da Guarda Nacional em 1871.

De acordo com Valdemir Azeredo, certo dia, numa de suas andanças pelas fazendas vizinhas negociando gado, ao chegar numa casa, um garoto teria gritado: “Olha o Major Pissarra! Olha o Major Pissarra!” A mãe do menino, temerosa, com medo de ser repreendida, pegou o menino pra bater, mas o Major teria dito: “Deixe!… Deixe o menino! Ele não tem culpa, todos me chamam de Pissarra mesmo! De hoje em diante, vou adotar este nome. Vou no tabelião e vou alterar meu nome para Joaquim Pereira Franco Pissarra! E tenho dito!”.

A brutal morte da Felicidade e o suicídio do Major

Em seu poema produzido a partir de relatos históricos e conversas com pessoas que tiveram conhecimento de Major Pissarra, o escritor Valdemir Azeredo romantiza uma paixão entre o poderoso fazendeiro e “uma linda negra, de lábios amendoados e olhos redondos e firmes, corpo com silhueta de uma sereia”.

O Major teria então começado a fazer investidas sobre a moça, de nome ‘Felicidade’. Entretanto, ela não cedia à pressão de seu senhor. Relata-se que toda vez que Major Pissarra vinha à Serra Sede, no mercado, para negociar o café da colheita, ele fazia questão de levar a escrava Felicidade junto.

Teria sido numa destas viagens que ele, no auge da sua loucura e desejo, tentou agarrá-la. Novamente não cedendo a suas vontades, Felicidade teria sido chicoteada até a morte. Segundo contou Valdemir Azeredo, de acordo com suas pesquisas, o fato teria ocorrido perto da Ponte do Bagaço, que atualmente é o km 246 da BR-101, depois do bairro Belvedere no norte da Serra perto da divisa com Fundão.

Em seu poema, Valdemir Azeredo narra um Major Pissarra tomado pela culpa e desespero. Tendo ele se trancado no quarto da casa grande da sua fazenda. Dias depois, enfrentando um inquérito e sendo “alvo de fofocas”, o Major teria cometido suicídio por um veneno poderoso, naquele tempo chamado de Formicida Tatu. Ao abrir a porta, serviçais e autoridades teriam encontrado Major Pissarra caído no chão, com a boca espumando e os olhos arregalados, já morto envenenado.

‘Caso Pissarra’ virou guerra política na província

É muito difícil historiografar casos como esse, envolvendo pessoas poderosas em tempos distantes e lugares até então remotos. Por isso, a verdade, nunca se saberá. O que se pode fazer é pesquisar fontes da época e reproduzir jornalisticamente as narrativas obtidas para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.

De acordo com um matérias de jornais da época, dos quais o Histórias da Serra se debruçou nas últimas semanas, a mulher de nome Felicidade, que pertencia ao Major Pissarra, na condição de escrava foi morta a chicotadas no dia 13 de março de 1883. E teve seu cadáver desovado em uma outra propriedade rural, que pertencia a um opositor de Pissarra. Cinco dias depois de sua morte o jornal ‘A Província do Espírito Santo’ na edição de número 181 denunciou o caso e cobrou investigação das autoridades. Abaixo segue parte do relato publicado pelo jornal, que é o primeiro registro encontrado sobre a morte de Felicidade:

Informa-se [que] pessoa chegada da cidade da Serra, que em terras de José Pereira de Barcellos [deputado de oposição a Pissarra], foi encontrada [um] cadáver já putrefato de uma mulher, que se supõe escrava. Acrescenta o nosso informante que dias antes, Joaquim Pereira de Barcelos e seu escravo Rufino viram evidências de cicatrizes de azorrague nas costas [chicotadas], e que o cadáver foi deparado [encontrado] porque uma grande quantidade de corvos denunciou sua existência na mata. Convém que a policie syndique [investigue] da verdade do que vimos de narrar”.

Apesar do histórico escravocrata do Brasil e lamentáveis casos de pessoas escravizadas vitimas incontáveis vezes de brutais violências cometidas pelos seus senhores da época, naquele período, o movimento abolicionista já estava pipocando em todo o país. E no Espírito Santo não era diferente.

Tanto é que a Lei Áurea (oficialmente Lei n.º 3.353) que extinguiu a escravidão no Brasil foi publicada em 13 de maio de 1888, ou seja, 5 anos depois do crime ocorrido com a escrava Felicidade. Naquele período, havia um combate muito forte por segmentos da sociedade contra senhores de escravos. Eles eram chamados de ‘liberais’ enquanto os movimentos contrários que queriam a manutenção do sistema escravagista eram chamados de ‘conservadores’.

Após a denúncia do jornal, parte da imprensa pró-abolicionismo da época, deputados e movimentos que lutavam pela causam passaram a fazer forte pressão para que o caso fosse investigado. Já se sabia que a vitima era a escrava Felicidade, que pertencia ao Major Pissarra, na época, um líder respeitado do partido conservador.

Chefe de Polícia abre inquérito contra Pissarra

Do dia 18 de março de 1883, quando o cadáver da escrava Felicidade foi encontrado e noticiado, até o dia 16 de abril, data da morte de Major Pissarra, transcorreram 28 dias. Neste intervalo, o fazendeiro foi alvo de um inquérito policial conduzido pelo chefe de polícia Antônio Ferreira de Sousa Pitanga. Tais fatos foram amplamente noticiados por jornais da época, como ‘O Horizonte’, ‘O Espírito-Santense’ e ‘A Província do Espírito Santo’.

O Chefe de Polícia solicitou o testemunho de várias pessoas, dentre elas, serviçais, escravos, familiares e conhecidos de Major Pissarra. O que causou grande repercussão na época e muito constrangimento por parte de Pissarra. Além disso, promoveu diligências até a Fazenda Calugimirim, de propriedade do Major. Em uma dessas diligências, o chefe de Polícia narra no inquérito publicado pelos jornais, que Pissarra se prendeu no quarto durante 30 minutos. Após autoridades que acompanhavam o chefe de polícia arrombar a porta, o Major foi encontrado morto.

No inquérito, o chefe de polícia afirma que pediu perícia no cadáver de Pissarra, e teria sido constatada a causa da morte como apoplexia. O termo se referia ao que agora é chamado de AVC. Porém, em vários momentos das coberturas jornalísticas da época, tanto o chefe de polícia, quanto deputados que se digladiavam nas sessões da Câmara Provincial, falavam abertamente sobre a “ingestão de substância mortal” cometida pelo próprio Major Pissarra.

Suicídio: vítima do ‘liberalismo’ ou da ‘perseguição’ política?

Após a morte de Pissarra, a política provincial não falava de outra coisa. Líderes do partido conservador como o deputado Pessoa Júnior acusava o chefe de polícia de perseguir Pissarra, sob a orientação de líderes do partido liberal em vistas da proximidade da eleição.

As acusações ganhavam coro entre jornais com linha editorial conservador, como o Jornal ‘O Espírito Santense’, que em suas edições subsequentes a morte do major, o jornal fez defesas inflamadas pela honra do fazendeiro e acusações de perseguição que culminaram na morte de Pissarra.

No dia 19 de abril, ou seja, três dia depois do suicídio de Major Pissarra o Jornal publicou um editorial na primeira página com o título “Mais um vitima do liberalismo”, do qual narra à morte de Pissarra. O Jornal cita o Major como sendo o chefe do partido conservador da cidade e comarca da Serra, sendo ele vitima “dos homens que infelizmente governam este malfado paiz [país]”. O Jornal diz que às 8h da manha do domingo dia 18 de abril de 1883, Pissarra recebeu a intimação para testemunhar no processo aberto “abrupto” por crime de morte [referindo-se ao assassinato da escrava Felicidade]; o jornal segue: “No mesmo dia recebíamos de um amigo da Serra, o seguinte telegrama apresentado às 5h da tarde: Pissarra morto; perseguição Chefe [referindo-se ao Chefe de Polícia Antônio Ferreira de Sousa Pitanga]”.

No dia 22 abril 1883 o jornal voltou a publicar um editorial na primeira página acusando o chefe de polícia de ser parcial e perseguidor. O Jornal caracterizava Pissarra como cidadão humanitário, patriota e caridoso’ que já estava “velho, cego e paralytico [paralítico]”, e que teria sido usado pela oposição como uma espécie de ferramenta para a propaganda anti-conservadora.

O Major Pissarraa, com 71 annos [anos] de idade, paralytico, a não poder andar senão encostado a um bordão ou a alguém, cego inteiramente, pois pouco via do olho esquerdo, por cataratas de que foi accommettido. À ultimo hora descobre-se que ele barbaramente siciciara (?) uma escrava e arrastando-a por uma ladeira! Já se vio [viu] mentir e calumniar [caluniar] assim!!! A escrava apparecera morta trez quartos de légua a uma legoa distante, de sua fazenda e nos cannaviaes [canaviais] de um seu desafeiçoado politico Sr. José de Barcellos, e ele, Pissarra que já não podia andar ne vêr, arrastou a escrava a uma legoa de distancia com trez morros e ladeiras íngremes e subir e descer e ali [ali] deixando-a, quando tendo ella fugido à dias só depois foi encontrada morta e devorada por corvos! Estão loucos os defensores! Mostrem se são capazes que no processo instaurado consta tal cousa [coisa? Provem se são capazes que o Major Pissarra, podia andar e vêr, e se tinha forças para sirviciar alguem? […] Não se lança assim o labéo [acusação] de criminoso a um cidadão da ordem de Major Pissarra, não. Ele sempre passou por um homem de bem, carindoso, e humanitário!

Já no dia 26, o jornal volta a fazer uma defesa editorial de Major Pissarra, acusando outros jornais de perseguição e atacando o chefe de polícia responsável pelo caso. O editorial termina com a seguinte redação:

Nenhum documento appareça [parece] a confirmar que o acto [ato] de vosso inquérito e mandado de ver-se processar e jurar testemunhas, foi legal; portanto, fica de pé toda a nossa accusação [acusação] e a feita por distintos deputados conservadores, a provar a arbitrariedade commettida [cometida] e perseguição ao Major Pissarra, sendo isso a única causa de sua morte repentina”.

Abolicionistas respondem dando voz ao chefe de polícia: “culpado”

Por sua vez, o partido liberal e os jornais ligados editorialmente à causa, cobravam explicações sobre a morte da escrava Felicidade. Entre os parlamentares mais aguerridos estava João Aguirra. Após a morte de Pissarra, tanto o jornal O Horizonte quanto o Jornal ‘A Província do Espírito-Santo’ noticiaram o caso e defenderam a legalidade da investigação e os procedimentos adotados pelo chefe de polícia Antônio Ferreira de Sousa Pitanga.

Na edição do dia 17 de abril, um dia depois da morte de Pissarra, o Jornal “A Província do Espírito-Santo’ publicou:

Occurrencia [Ocorrência] grave – Por ordem da administração dirigiu-se o exm. Sr. dr. chefe de policia à cidade da Serra, afim de syndicar [investigar] um crime de morte praticado n’essa localidade. Feito o inquerito e entendendo o exm. Chefe de policia que havia base para formação da culpa, determinou que fossem feitas as intimações legaes [legais]. Ao receber a intimação, Major Joaquim Pissarra faleceu repentinamente. No procedimento do distincto [distinto] magistrado e na resolução tomada pelo administrador da província, nada houve que não que não fosse de harmonia com a lei – e em observância aos preceitos do dever”.

No mesmo dia, o Jornal O Horizonte relatou: “Facto Lamentável – Tendo o Exm. Sr. Dr. Chefe de Polícia, por deliberação da Presidencia, se dirigindo à cidade da Serra para ali proceder a um inquérito em consequencia de um crime de morte praticado há pouco tempo, e achando base suficiente para a formação da culpa, mandou que fossem feitas as intimações legais. O indiciário Major Pissarra, ao receber a intimação, faleceu repentinamente. O procedimento do digno magistrato foi o mais legal possível. O fato, lamentável em si, foi exclusivamente devido à circunstancias que a lei previne, e a autoridade tinha obrigação de proceder pelo modo porque o fez.

A partir daí se deu uma guerra de narrativas, tendo o chefe de polícia no centro delas. Os jornais tido como ‘liberais’ passaram a dar ênfase nos procedimentos do inquérito, em vista das denuncias de arbitrariedade feitas pela oposição.

Chefe da Polícia disse não haver dúvidas e pede fim do processo após morte de Pissarra

No dia 20 de abril o Jornal ‘A Província do Espírito Santo’ publicou na íntegra toda a narrativa de acontecimentos dado oficialmente pela chefe de polícia, Antônio Ferreira de Sousa Pitanga.

Nele o chefe de Polícia narra que recebeu a denúncia do assassinato da escrava Felicidade de domínio do Major Joaquim Pereira Franco Pissarra e que instaurou um “rigoroso inquérito”. Depois disso, soube “por informação particular” que a subdelegacia já se havia procedido um inquérito e que já tinha sido remetido para arquivamento: “o que denota que havia qualquer motivo de embaraço à acção [ação] das autoridades locaes [locais]”, diz o chefe de polícia, explicitamente levantando suspeitas sobre possíveis intervenções na investigação.

Dr. Pitanga então se faz valer da autoridade do cargo e pede o termo de delito, afim de “syndicar [investigar] do facto [fato] e proceder na forma da lei contra seu autor [autor]”, disse.

Ele relata que durante os dias que transcorreram ele sofreu diversas obstruções para intimar testemunhas. Até que ele junta todas as testemunhas na Câmara da Serra e consegue o testemunho de todos os intimados: “mandei que fosse intimadas as testemunhas do inquérito a que procedi no paço da Câmara Municipal, com assistência do sr. promotor público da comarca e estando presentes cerca de vinte indivíduos que informou-me o delegado”.

Dr. Pitanga segue afirmando que ouviu todas as testemunhas e encaminhou as informações do inquérito para as demais autoridades, em carta para o presidente provincial, ele diz: “verificará v. ex. [referindo-se ao presidente da província] como ficou evidenciada a existência do crime definido no art. 194 do cod crim, e quão veementes são os indícios de haver sido seu auctor o próprio senhor da escrava, Major Joaquim Pereira Franco Pissarra”.

O Chefe de Polícia justifica que apesar da investigação ter culminado na morte de Pissarra, ele não poderia deixar de exercer sua função como chefe de Polícia:

Deixar de proceder criminalmente contra o auctor de tão grave delicto depois de colhido o elemento probatório que ressalta das peças d’esse inquerito, fora incontestavelmente o preceito legal e usando da attribuição que me confere no art. 9 paragrafo  único da lei nº 2033 de 20 de setembro de 1871, determinei que fosse instaurado o processo de formação de culpa, feitas as intimações legaes”, disse o delegado, explicitando que a investigação já tinha decidido pela culpa de Major Pissarra.

Então, dr. Pitanga detalha o dia da morte de Major Pissarra: “Ao receber a intimação para vir ver-se processar, medida de segurança estatuida em prol da defesa dos accusados, o indiciado [Major Pissarra] foi accommettido de um ataque que roubou lhe a vida alguns minutos depois”.

O Chefe de Polícia ainda defende que com a morte de Pissarra, o processo seja encerrado já que ele não tinha encontrado vestígios de participação de terceiros:

Em face dessa triste e inesperada occurrencia mandei sustar a acção criminal e archivar o inquerito, depois de ter feito autos de perguntas a duas testemunhas que constava-me fasiam revelações importantes, e que poderiam porventura denunciar criminalidade de terceiros. O que não se verificou. Mandei que o delegado procedesse corpo de delicto no cadaver do acusado afim de constatar a causa de sua morte, tendo os peritos declarado ter elle succumbido de uma apoplexia [AVC]. Taes foram as occurrencias havidas no decurso d’essa diligencia procedida de accordo com o precedo legal”, finaliza dr. Pitanga.

‘Boom’ contra a escravidão e encerramento do caso

Naquele momento, o Brasil vivia o ‘boom’ do movimento abolicionista, que seis anos depois seria consumado com a Lei Áurea. O ‘Caso Pissarra’ se transformou em um símbolo da luta entre os chamados ‘conservadores’ e ‘liberais’ na Província do Espírito Santo. Jornais e parlamentares continuaram a desferir acusações mútuas durantes os meses que se sucederam; mas com o tempo a pauta foi perdendo força e passou a compor as matérias secundárias dos jornais e dos temas debatidos na Assembleia Provincial. No dia 7 de junho os jornais da época noticiaram que o processo estava sendo encerrado devido a morte de Pissarra.

Para todos os efeitos legais, Major Pissarra nunca foi condenado a nada; pois, durante a investigação, cometeu suicídio e o caso foi encerrado. Para a história popular da Serra, o que ficou fixado foi que Pissarra matou a escrava Felicidade em um ato de loucura por ela não corresponder ao seu amor platônico. Quais os bastidores desse caso e o que exatamente ocorreu no dia 13 de março de 1883, se houve participação de terceiros, se foi Pissarra o único assassino ou se foi montada uma armadilha para derrubar o líder do partido conservador da Serra… ninguém conseguirá saber ao certo.

Já se passaram quase 140 anos, e este será um dos maiores mistérios da Serra, que envolve uma figura chave para hoje sermos uma cidade independente. Naquela época, o movimento abolicionista estava chegando ao auge, em 1883 ano em que a escrava Felicidade foi assassinada, Afonso Cláudio voltou ao Espírito Santo e foi um dos co-fundadores da Sociedade Libertadora Domingos Martins; um ano depois em 1884, Afonso Cláudio iria pela primeira vez registrar a Insurreição do Queimado, na Serra, ocorrida 35 ano antes e tido como literatura referência até hoje.

O capixaba acabou sendo o 1º Governador do Espírito Santo após a Proclamação da República em 1889. E ficou para sempre marcado na história do nosso estado como herói abolicionista e republicano, levando até nome de município. Enquanto o homem que promoveu a independência da Serra acabou tendo seus feitos e legados para sempre manchados com o sangue de uma jovem mulher negra e escravizada, seja ele culpado ou não.

Histórico Administrativo da Serra: entenda a diferença de Vila e Cidade

A então Freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Serra foi elevada à categoria de Vila em 1822, sendo que em1833 a Vila da Serra teve seu território desmembra­do do município de Vitória, através da resolução do Conselho de Governo de 2 de abril de 1833 e instalado em 19 de agosto daquele ano.

Portanto, é importante frisar, que a Serra tinha uma modelagem administrativa similar a uma cidade em 1833, ou seja, 42 anos antes de Major Pissarra propor a Lei aprovada em 06 de novembro de 1875.

Ocorre que a primeira idéia que temos com relação à “Vila” é a de um pequeno povoado ou de um pequeno número de casas. Na verdade “Vila” naquela época era uma denominação colonial, e só recebia esse título quando atingia um tamanho próprio de povoação. Com a elevação de Freguesia para Vila, a Serra passou a ter um Governo Municipal, representado pela Câmara de Vereadores. Na época não havia a figura do Prefeito que surge no Brasil somente em 1930.

Essa caracterização de Vila advém do conceito da era do Brasil Colonial no sistema Português de administração. Então, muitos municípios levam em consideração o dia da criação da Vila como data da independência (como no caso de São Paulo, por exemplo).

Porém, com o processo de amadurecimento advindo da Independência brasileira em 1822, essa caracterização de Vila passou a não tem valor administrativo no Brasil Império e solidificado no Brasil República. Grande parte das povoações que já tinham o título de Vila passaram a receber o título de Cidade, que era mais honorífico, já que na prática não acrescentava muita coisa em termos de organização politica e administrativa.

Mas para a história da nossa cidade, a independência da Serra é no ano de 1875 por meio da Lei proposta por Major Pissarra. Mesmo já sendo Vila, a Serra podia ser anexada novamente a Vitória, que detinha muito poder sobre os demais territórios; Mesmo tendo uma organização administrativa similar, o título de cidade deu a Serra a garantia de existência, e devemos isso ao fazendeiro de Chapada Grande, Major Pissarra.

Poema: A SAGA DO MAJOR PISSARRA

de Valdemir Ribeiro de Azeredo

Morava na Chapada Grande, numa fazenda,
Um homem conhecido como Major Pissarra.
Não sei se é uma história verídica ou uma lenda.
Até hoje na Serra esse fato ainda se narra.

Era um homem vermelho de média estatura,
Tinha muitas juntas de boi, era poderoso.
Ele tinha influência na política e na cultura,
Mas tinha fama de ser arredio e impiedoso.

O seu nome era temido por todo canto
A Serra era uma típica cidade provinciana.
Um homem chamado Joaquim Pereira Franco
Tornou-se uma lenda para a população serrana.

Certo dia, ao chegar numa fazenda distante,
“É ele! É o Major Pissarra!”, gritou a menina!
Quando sua mãe quis corrigi-la do afronte,
Disse ele: “Não bata! Esse é meu apelido, minha sina!

Hoje mesmo meu nome vai ser mudado,
Ele será: Joaquim Pereira Franco Pissarra,
É o nome com que o povo está mais acostumado.
Deixe a menina, ela só estava fazendo farra.”

Havia uma linda escrava em sua fazenda,
Pela qual ele tinha uma certa admiração.
Mais tarde, pelos seus açoites e belas prendas,
Não resistiu e acabou morrendo em suas mãos.

Isto aconteceu em Chapada Grande, na Serra,
Perto da lagoa que hoje se chama “Felicidade”.
Major Pissarra, senhorio de escravas e terras,
Tira a vida de uma escrava em plena mocidade.

Levantou-se uma grande confusão no município,
Foi como um rastro de pólvora e tiro de festim.
Então, o grande homem, de palavra e princípios,
Foi alvo de fofocas em todo comércio e botequim.

Todos comentavam sobre a morte da escrava,
O Major se viu menosprezado e um tanto acuado.
E em uma das fazendas que ele administrava
Ficou omisso e passava o dia todo trancado.

Naquele tempo, era costume de todo o senhorio
Açoitar todos os seus escravos quase sem clemência.
O Major se encontrava triste, muito arredio,
E com um enorme peso na sua consciência.

Na senzala, entre os escravos surgiu um cochicho:
Por ser uma escrava bonita e de corpo formoso,
Não cedendo à paixão do Major e seus caprichos,
Foi a única razão do Major ficar furioso.

O Major não tinha intenção de matá-la,
Isto era o que doía mais forte em seu peito.
Deve ter pensado: “Por que fui açoitá-la?…
Mas agora ela está morta, não tem jeito…”

Major Pissarra era um homem muito querido,
Porém esta tragédia abalou sua reputação.
Ele era major, tinha medo de ser advertido
Por um superior, alguém de um alto escalão.

Certo dia foi visitado por um colega sargento,
Mas não o recebeu, por ser de menor patente.
A sua dor e a sua angústia foram tendo seguimento,
O grande homem, pelas injúrias, se viu impotente.

Foi ter com ele outro colega, um comandante.
Pela fresta da janela do seu quarto ele notou.
Mas, mesmo antes de ter uma conversa decente,
O imponente Major Pissarra se envenenou.

Todos ficaram preocupados pela demora.
Batia-se na porta e nenhuma resposta se ouvia.
Era um silêncio profundo, de quase uma hora.
A porta foi arrombada, ele estava em agonia.

Tomou Formicida Tatu em grande quantidade.
Que ironia! O comandante queria apenas conversar.
Tudo por uma escrava chamada “Felicidade”.
Por culpa, o Major teve que se matar.

Este texto é um trabalho de pesquisa jornalística e levantamento de informações feito pelo jornalista Yuri Scardini. Foram usadas fontes diversas como a edição 934 do Jornal Tempo Novo, escrita por Valdemir Ribeiro de Azeredo; literaturas de autoria de Clério Borges e Naly Miranda, além de uma gama de material jornalístico do passado, entre eles os jornais: O Horizonte, A Província do Espírito Santo; e o Espirito-Santante. Todos eles encerrados no final de século 19.

Yuri Scardini

Morador da Serra, Yuri Scardini é repórter do Tempo Novo. Atualmente, o jornalista escreve para diversas editorias do portal, principalmente para a editoria de política.

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