Histórias da Serra

Mês das Mulheres: A Morte de Felicidade – Conheça um dos casos mais emblemáticos da Serra

Felicidade – Imagem gerada por IA com a seguinte descrição histórica: “uma linda negra, de lábios amendoados e olhos redondos e firmes, corpo com silhueta de uma sereia”.

O Assassinato de Felicidade

No Mês das Mulheres, a Coluna Histórias da Serra, do Jornal Tempo Novo, resgata o emblemático caso de Felicidade, uma mulher negra escravizada que, após ser assassinada, tornou-se parte de um conflituoso embate político. O episódio culminou no suicídio do Major Pissarra, um poderoso ‘coronel’ que, em 1875, quando deputado, foi o autor da lei que elevou a Serra ao status de cidade.

Além dos registros jornalísticos da época, que foram resgatados e estudados, dois memorialistas e escritores da Serra registraram o Caso Felicidade, colhendo relatos e informações de pessoas contemporâneas aos fatos: Naly Miranda e Valdemir Ribeiro de Azeredo. O texto abaixo faz parte do livro “Serra: A História de uma Cidade”, publicado em 2024.

A memória daquele tempo, em 1883, conta que existia uma mulher escravizada chamada Felicidade, descrita como “uma linda negra, de lábios amendoados e olhos redondos e firmes, corpo com silhueta de uma sereia”. Ela pertencia a uma importante personalidade da época, o Major Pissarra. Encantado por sua beleza, o Major assediava Felicidade insistentemente, mas ela nunca cedeu à pressão.

Toda vez que Major Pissarra ia à Serra Sede para negociar sua colheita de café, fazia questão de levá-la consigo. Em uma dessas viagens, ele tentou estuprá-la. Como não conseguiu, chicoteou e espancou Felicidade até a morte.

Registros da Época

Apesar da tentativa de abafar o caso, há registros históricos, ainda que comprometidos pelas narrativas políticas da época. Felicidade, que pertencia ao Major Pissarra, foi morta a chicotadas, e seu cadáver foi encontrado em março de 1883, já em estado de decomposição. Seu corpo foi localizado porque urubus rondavam a área, denunciando sua presença.

Um inquérito foi aberto em 9 de março e encerrado em 15 de março, com o promotor Daniel Germano Aguiar Montarroyos concluindo não haver provas de crime e presumindo que Felicidade havia fugido e morrido de causas naturais. Porém, dias depois, o caso ganhou repercussão quando o jornal “A Província do Espírito Santo” denunciou o suposto assassinato e cobrou investigações mais rigorosas das autoridades.

Investigação e Suicídio

Major Pissarra – Imagem gerada por IA, com a seguinte descrição histórica: “homem troncudo, média estatura, seu corpo e seu rosto eram vermelhos e ele tinha umas manchas na pele parecendo piçarras (pedras de xisto) o que hoje poderiam ser comparados às sardas”.

A partir dessa denúncia, deputados e movimentos abolicionistas passaram a pressionar por uma investigação mais aprofundada. Já se sabia que a vítima era uma mulher escravizada e que pertencia ao Major Pissarra, o maior líder do Partido Conservador na Serra.

Com isso, um segundo inquérito foi aberto, desta vez conduzido pelo chefe de polícia Antônio Ferreira de Sousa Pitanga. Ele convocou diversas testemunhas, incluindo serviçais, escravizados, familiares e conhecidos do Major Pissarra. A investigação causou grande alvoroço e constrangimento ao político, além de promover diligências até a Fazenda Calugimirim, de propriedade do Major, que hoje estaria localizada na região rural da Serra.

No dia 18 de abril, durante uma dessas diligências, o chefe de polícia relatou que Pissarra se trancou em seu quarto por 30 minutos. O silêncio chamou a atenção das autoridades, que arrombaram a porta e encontraram o Major morto.

O laudo oficial atribuiu sua morte à apoplexia, termo da época para o que hoje conhecemos como Acidente Vascular Cerebral (AVC). No entanto, relatos indicavam que ele ingeriu uma substância tóxica, possivelmente um formicida, que teria causado um derrame cerebral.

Nos jornais da época, conservadores afirmavam que Pissarra foi vítima de perseguição política, enquanto liberais insistiam que ele cometeu suicídio para evitar ser preso pelo homicídio de Felicidade. Vale lembrar que, naquela época, a abolição da escravatura estava em discussão no Brasil, e algumas regras e leis já haviam sido instituídas, tornando o assassinato de uma pessoa escravizada um crime passível de punição com prisão.

A Disputa Política e o Esquecimento de Felicidade

Após a morte de Pissarra, a política provincial foi tomada por debates acalorados. Deputados conservadores, como Pessoa Júnior, acusaram o chefe de polícia de perseguir Pissarra a mando dos líderes do Partido Liberal, que supostamente queriam desgastar os conservadores às vésperas da eleição.

O jornal “O Espírito Santense”, de linha conservadora, defendeu Major Pissarra, chamando-o de “cidadão humanitário, patriota e caridoso”, afirmando ainda que ele era “velho, cego e paralítico” e teria sido usado como peça de propaganda contra os conservadores.

Por outro lado, os jornais “O Horizonte” e “A Província do Espírito Santo” defenderam a legalidade da investigação e reforçaram as evidências apontadas no segundo inquérito, que atribuía o assassinato de Felicidade ao Major Pissarra.

A disputa política acabou soterrando a memória de Felicidade, transformando sua morte em um detalhe ofuscado pelo embate político. Em 20 de abril, “A Província do Espírito Santo” publicou um relatório detalhado do chefe de polícia Pitanga, que sugeria que o governo provincial tentou interferir na investigação para proteger Pissarra.

Pitanga afirmou que, se o inquérito fosse concluído, Pissarra seria preso. Supostamente, essa informação vazou para o Major, que, ao receber a notificação judicial, teria cometido suicídio para evitar a prisão e a humilhação pública.

Após meses de disputa, o caso foi arquivado em junho de 1883, devido evidentemente à morte do principal suspeito. Para efeito legal, Major Pissarra nunca foi condenado.

Curiosamente, sua memória foi preservada: a Rua Major Pissarra, localizada na Serra Sede, onde hoje está a Câmara Municipal da Serra, leva seu nome. Um balancete municipal de 1910 já menciona gastos com encanamento na Rua Major Pissarra, sugerindo que a homenagem ocorreu pouco tempo depois do caso.

O Esquecimento de Felicidade

Imagem gerada por IA.

No fim, a morte de Felicidade se tornou secundária, eclipsada pelo jogo de poder da época. Pouco se sabe sobre sua história, pois sua memória foi apagada pelo embate entre os grupos dominantes.

O suicídio de Pissarra pode ser interpretado como uma confissão silenciosa de culpa, mas a verdade permanece um mistério. O que é indiscutível é que Felicidade foi vítima da escravidão até seus últimos momentos de vida. Sua morte simboliza um protesto contra um sistema desumano, no qual a dignidade de uma mulher negra não tinha espaço.

A história do Brasil e do Espírito Santo é marcada pelo apagamento das mulheres, cujas vozes e feitos foram silenciados em narrativas dominadas por homens. O caso de Felicidade, uma mulher escravizada assassinada na Serra em 1883, exemplifica esse esquecimento. Seu nome foi ofuscado por disputas políticas, e sua morte, que deveria simbolizar a brutalidade da escravidão, acabou secundarizada nos registros históricos. Resgatar histórias como a dela é essencial para dar visibilidade às mulheres que moldaram o passado, mas foram apagadas da memória oficial.

Outra questão é que além de tudo isso, o caso reflete a mentalidade escravocrata dos coronéis da Serra, que não souberam adaptar o sistema de trabalho durante a transição para a abolição – que no Espírito Santo foi dominada pela imigração europeia. Esse fracasso econômico e social foi um dos fatores que contribuíram para o declínio da Serra nos anos seguintes.

Yuri Scardini

Morador da Serra, Yuri Scardini é repórter do Tempo Novo. Atualmente, o jornalista escreve para diversas editorias do portal, principalmente para a editoria de política.

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