De onde você vem? Quem lhe trouxe até aqui? Onde estão enterrados seus bisavós, trisavós, tetravós…? E a raiz da sua árvore genealógica? De que nação é o DNA da sua ancestralidade? Neste país de pouco mais de 500 anos, é o sangue (e o derramar dele) quem determina as respostas. Ou silencia-as, pois para o povo negro resta a lacuna da incerteza e da inexatidão. A história sequestrada (e queimada nos arquivos públicos) é dor latente do período escravocrata com sequelas sociais ainda bem abertas, nutridas pela fenda da desigualdade, pelo apagamento das nossas pisadas e pela desestruturação de lares. Viemos da África, mas de que África, um caldeirão étnico disperso em um território gigante com mais de 30 milhões de quilômetros quadrados?
Angustiante é a impossibilidade de rastreio preciso dessa saga, com muitos dos capítulos sem registro em cartórios, só transmitidos pela oralidade para a geração seguinte. Diante de mais essa escassez imposta aos afro-brasileiros, feitos que recuperam a mínima parte que seja desse passado são dignos de celebração. E quanto mais próximos do nosso quintal, com mais força brota a sensação de pertencimento. Escrevo isso no momento em que vejo com orgulho a notícia de que a nossa Serra, o palco da maior insurreição de escravos da Região Sudeste – a Revolta de Queimado, prestes a completar 172 anos –, ganha o devido reconhecimento nacional. A ruína da Igreja de São José do Queimado recebeu do Iphan “menção honrosa” no consagrado prêmio Rodrigo Melo Francisco de Andrade, pela preservação e resgate da história negra.
Esse foi um empenho árduo, comunitário, de longa resistência. Fui testemunha, como cidadão e vereador serrano e deputado estadual, da batalha contra o estado de abandono, denunciando as condições precárias da construção, sensibilizando as esferas municipal e estadual para a restauração. A mata já havia se aberto ao redor do templo, também tomado pelas plantas. Era cena desoladora para quem sabe o que guarda aquele lugar! Suas paredes laterais eram seguras por tirantes para evitar o desmoronamento.
Valeram a pena as audiências públicas realizadas na Câmara e na Assembleia, as sessões solenes para celebrar e resgatar o protagonismo dos insurretos do Queimado. Valeu a pena a participação das religiões de matriz africana, da Igreja Católica e do movimento social ao celebrarem desde a década de 1980 a sua quizomba no sítio histórico. Conseguimos evitar a segunda derrota do povo negro, ao não permitir que essa história fosse apagada do território original da revolta.
A reforma veio recentemente. A vitória da coletividade deve nos impulsionar. E assim como a saga originária do Queimado, símbolo de resistência contra o apagamento de um caminhar iniciado do outro lado do Atlântico (em Moçambique, Angola, Gana, Nigéria…), lutemos por essa reconexão com os filhos do continente mãe. Oxalá outros espaços, outros focos de levante, tivessem tido o mesmo destino.
Que o esforço de Chico Prego, João da Viúva e Elisiário continue inspirando a todos nós, pois faz parte do que somos hoje. Queimado é Espírito Santo. A região, um entreposto que chegou a abrigar 5 mil pessoas, é berço de muitas famílias que hoje habitam os morros de Vitória. Queimado resiste em nós e nos ensina a lição do embate contra falsas promessas dadas a quem ansiava por liberdade. Salve a África, salve a Serra, salve Queimado.
“Desperto um belo dia no mundo e me atribuo um único direito: exigir do outro um comportamento humano. Um único dever: o de nunca, através de minhas opções, renegar minha liberdade.” (Frantz Fanon)
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