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Serviço público pelo mundo passa por reformas e influencia futuro no Brasil

O pesquisador Rafael Leite explica que os “concurseiros” em geral são pessoas de famílias com melhores condições financeiras, que conseguem se dedicar integralmente aos estudos. Foto: Divulgação
TATIANA CAVALCANTI

O serviço público ao redor do mundo tem passado por reformas nas últimas décadas. Um dos casos mais emblemáticos é o da África do Sul após o fim do apartheid, onde o governo implementou mudanças drásticas para a inclusão de mais funcionários negros num quadro majoritariamente branco.

No Brasil, tramita proposta constitucional para mudar a cara do funcionalismo, que segue o modelo mais fechado estabelecido na França nos anos seguintes à Revolução Francesa (1789).

Esta é a terceira reportagem da série O Profissional Público do Futuro, que discute a qualidade do serviço na administração pública no século 21, em parceria com a República.org.

No país europeu, o presidente Emmanuel Macron tenta implementar uma reforma administrativa para ampliar o serviço público a profissionais de fora do Estado, em especial em cargos de chefia. Lá, vagas para carreiras de prestígio geralmente são restritas a servidores de carreira, apesar de exceções.

Com um concurso público que mede os conhecimentos gerais por meio de provas escritas e estabilidade, o modelo francês é a grande inspiração do Brasil e de países como Portugal e Espanha, de acordo com o pesquisador associado ao centro de estudos New South Institute Rafael Leite.

“Quem passa num concurso faz parte de uma carreira. Para alcançar o topo, tem que permanecer um tempo no serviço público e ser aprovado em avaliação de desempenho”, afirma Leite.

O pesquisador explica que, nesse cenário, os “concurseiros” em geral são pessoas de famílias com melhores condições financeiras, que conseguem se dedicar integralmente aos estudos. Por isso, destaca ele, funções de chefia na França são na maioria dos casos ocupadas por funcionários que tiveram condições de frequentar universidades de prestígio, como Sorbonne ou INSP (Institut National du Service Public), a antiga Escola Nacional de Administração, para formação de altos funcionários públicos.

Algo similar ocorre no Reino Unido, onde as lideranças do serviço público cursaram Oxford e Cambridge.

“Quem fez uma dessas duas universidades domina o serviço público até hoje. Não reflete a sociedade, e isso é motivo de discussões recorrentes.” O pesquisador diz ainda que na Grã-Bretanha há uma comissão independente que realiza seleções sem, em tese, influência política. Os postos de trabalho no setor público são preenchidos com seleção aberta e competitiva, no chamado sistema de posições.

Para vagas iniciais, os candidatos se inscrevem e têm seus currículos avaliados, como no setor privado. O processo pode incluir entrevistas e outras dinâmicas. Mas para os cargos mais elevados é aberto um novo processo seletivo. Os EUA tinham uma tendência de se diferenciar institucionalmente da Europa após a independência, em 1776, pois consideravam aquele sistema de carreira elitista, segundo Leite. Lá o servidor não entra numa carreira inicial com a perspectiva de ser promovido ao longo dos anos.

“Nos EUA é possível um profissional do setor privado assumir diretamente cargos de chefia, com altos salários e estabilidade. Qualquer posição pode ser aberta a candidatos de dentro ou de fora do governo.”

O Chile adota uma mistura desses modelos, e no país sul-americano há várias maneiras de entrar no serviço público, com mecanismos diferentes de avaliação, como análise de currículos e entrevistas.

Francisco Silva, 51, responsável pela Divisão Jurídica e Assuntos Institucionais, conta que sempre teve vocação para o serviço público. Ao concluir o curso de direito, em 2000, já buscou trabalho nessa área. “Nunca pensei em trabalhar no setor privado.” Silva iniciou sua trajetória no funcionalismo público chileno como advogado de um órgão que fiscaliza o cumprimento de deveres trabalhistas por empresas privadas.

Ele inicialmente entrou na categoria de contrato anual e, depois, ganhou estabilidade. “Quando a pessoa está há mais de dois anos como ‘a contrata’ [temporário], presume-se que está apta ao cargo por méritos. Ganha estabilidade e só pode ser desvinculada se falhar na avaliação de desempenho”, afirma Silva.

O sul-africano Ivor Chipkin, diretor do New South Institute, explica que a África do Sul rompeu com o modelo de ingresso no serviço público após o fim do apartheid, em 1994, regime de segregação racial que por 46 anos dominou o país. “Antes, numa seleção, mesmo que uma enfermeira negra fosse mais competente que outras candidatas, ela perdia a vaga para uma branca. No país onde a maioria da população é negra, as repartições públicas eram compostas de servidores brancos, 100% praticamente.”

O especialista diz que apesar disso, a África do Sul branca tinha um sistema público excelente, com profissionais competentes selecionados mediante provas. “Mas os negros não tinham acesso.”

Para a população negra, foram criados no final dos anos 1940 os bantustões, áreas em que eram obrigados a viver e onde havia um funcionalismo público próprio. Com o fim do apartheid, começou um movimento com metas para elevar o número de profissionais negros atuando no sistema púbico.

“De uma hora para outra, os profissionais bantustões faziam parte de um único governo. Começou a haver uma mudança de perfil racial. Mas também surgiram problemas decorrentes da falta de critérios na seleção dos servidores, o que levou a erros que custaram muito dinheiro e desgaste”, afirma Chipkin.

O Brasil ainda é um país mais conservador para reformas, afirma Leite, e precisa estar atento ao que acontece no mundo. O Chile mudou a seleção dos cargos de confiança para depois ampliar a reforma. O Reino Unido, que nos últimos anos se preocupou em aumentar a representatividade de raça e gênero, agora visa a diversidade de classe e de formações. “Tudo contribui para um ambiente mais inovador.”

Para ele, uma mudança cultural é necessária antes de alterar a lei, porque muitos aspectos do serviço público estão enraizados, e mudanças precisam de aceitação.

Serviço Público ao redor do mundo

Quando surgiu

  • País é berço do serviço público moderno; no início, cargos públicos eram comprados ou herdados
  • Após 1789 (Revolução Francesa), muitas reformas foram introduzidas até chegar ao atual modelo, que inspirou diversos países, incluindo o Brasil

Como funciona

  • Concurso público para todas as posições no governo
  • Provas teóricas e de conhecimentos gerais
  • Servidor tem estabilidade

Modelo

  • Organizado em carreiras, ‘fechado’
  • No geral, os cargos de chefia são restritos aos servidores de carreira, especialmente as posições de maior prestígio
  • O servidor de início de carreira assume uma função e é promovido ao longo dos anos até alcançar o topo da carreira

Quando surgiu

  • Após a independência do país, em 1776, com a tendência de se diferenciar dos modelos da Europa, considerados elitistas
  • Seleções impessoais foram introduzidas em nível federal em 1883, após aprovação do Pendleton Act

Como funciona

  • Candidato, de dentro ou de fora do setor público, inscreve-se para uma posição no governo
  • Provas de caráter mais técnico e menos teórico
  • É comum haver entrevistas e análise de currículos
  • Órgãos independentes supervisionam as seleções
  • O número de cargos de indicação política é muito superior aos modelos europeus
  • Servidor tem estabilidade para exercer cargo com independência; é protegido de demissões politicamente motivadas

Modelo

  • De posições, ‘aberto’
  • Todos os cargos, inclusive os de chefia, são abertos a inscrições
  • Servidores podem ser contratados para diferentes estágios da carreira
  • É possível se inscrever direto a um cargo no topo do serviço público

Quando mudou

  • Em 2003, país passou por reforma na gestão de lideranças
  • Foi adotada a seleção por competências para a escolha dos altos cargo

Como funciona

  • Apoio de empresas de recrutamento na atração e na seleção de candidatos
  • Busca ativa de candidatos, análise de currículos, entrevistas e outras mecanismos de avaliação
  • Entrevistas com especialistas ou membros de conselho independente designado pelo Congresso, a depender do cargo
  • Conselho escolhe de três a cinco nomes para compor a lista final
  • Dessa relação, em ordem de preferência, a escolha fica a cargo do ministro

Modelo

  • ‘Aberto’ para cargos de liderança, ‘misto’ para as demais posições no governo
  • A seleção de cargos de baixo e médio escalão é feita com aplicação de provas, mas há espaço para influência políticas na contratação de temporários

Quando mudou

  • Durante os 46 anos do apartheid, o serviço público era composto majoritariamente por homens brancos
  • Sistema fechado: a ascensão em carreira era determinada pelo tempo de serviço; concordar com a ideologia do governo era fundamental
  • Com o fim do apartheid, em 1994, a administração pública sofre mudanças profundas para alterar sua composição racial

Como funciona

  • Adotou-se um modelo aberto, facilitando a inclusão de mais profissionais negros
  • A seleção sofre influência política, especialmente de ministros de Estado
  • Aplicação de provas, análise de currículos e entrevistas são permitidas, em alguns casos ocorrem de maneira independente e transparente
  • Há amplo espaço para politização

Modelo

  • ‘Aberto’ em todos os níveis de governo, com margem para influências políticas sobre seleção e promoção
  • Pode ser adotada avaliação de competências mais flexível
  • Em alguns casos, critérios profissionais são utilizados para determinar escolhas políticas
  • Há um órgão para supervisionar as políticas de RH do governo, mas sem poder de punir desvios

Quando surgiu

  • Seleção por mérito mediante provas escritas a partir do século 6
  • Modelo inspirou a criação de burocracias em impérios como Japão, Coreia e Vietnã e influenciou diplomatas europeus

Como funciona

  • Guokao, prova realizada no país inteiro no mesmo dia, é a principal porta de entrada para cargos de início de carreira
  • As provas incluem perguntas de múltipla escolha e redações
  • Nota pode alavancar chances de contrato para funções mais relevantes
  • Exame preenche cargos nos governos municipais, provinciais e nacional
  • Prova é anual e há limite de idade para inscrição: 35 anos (exceção a mestrados ou doutorados)
  • Entrevistas antes da contratação definitiva
  • Evolução profissional depende da avaliação de desempenho ou de decisões políticas tomadas pelo Partido Comunista Chinês
  • Os servidores públicos não são obrigados a se filiar ao partido; 95% são filiados

Modelo

  • ‘Fechado’, com ampla concorrência em vagas de início de carreira
  • A meritocracia é fundamental, mas desde 1949 o partido é responsável por definir a ascensão profissional
  • Escolha para cargos mais altos e das empresas estatais é realizada pelo partido
  • Em geral, posições de liderança exigem ampla experiência profissional no serviço público
  • O modelo chinês atual se diferencia do modelo soviético por ser competitivo e valorizar o reconhecimento de tecnocratas alinhados ao partido

Quando surgiu

  • Teve início com a independência do país em 1901, apesar de ter arquitetura institucional inspirada pelo modelo britânico
  • O primeiro grande período de reformas ocorreu entre 1880 e a Primeira Guerra Mundial, enfatizando a independência entre política e administração, mais eficiente e atenta a princípios científicos
  • Passou por reformas sutis nos anos seguintes, que ainda estão em curso

Como funciona

  • Não há concursos públicos
  • Contratação ocorre de maneira semelhante ao setor privado
  • Há processos seletivos específicos (entrevistas e avaliações de currículos)
  • Processo competitivo aberto aos funcionários públicos e à comunidade em geral
  • Em casos específicos e de menor nível hierárquico, é possível que a vaga seja aberta apenas a interessados dentro do serviço público
  • Para cargos de liderança, a vaga deve ser sempre aberta publicamente

Modelo

  • ‘Aberto’
  • Os mais altos escalões das agências (diretoria) são indicações políticas dos ministros das áreas correspondentes
  • As indicações tendem a se basear em mérito e experiência dentro do serviço público

 

 

Fontes: Rafael Leite, pesquisador associado, Ivor Chipkin, diretor do New South Institute, e Flávia Donadelli, professora de políticas e gestão pública da Victoria University of Wellington – Nova Zelândia (Escola de Governo)

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