RAFAEL BALAGO
Um passaporte de papel, cheio de carimbos, deve virar coisa do passado, planejam as entidades que controlam as regras do setor aéreo global.
O setor busca formas de digitalizar a identificação dos viajantes, para ganhar tempo nos aeroportos e, assim, reduzir custos e aumentar a segurança.
Hoje, cada país emite seu passaporte em papel, que tem um chip para facilitar a leitura por máquinas. Na maioria das vezes, os agentes de fronteira checam o documento manualmente. A caderneta também abriga os vistos, exigidos para entrada em alguns países, como Estados Unidos e Brasil.
A ideia é que estes dados, em vez de marcados em papel timbrado, fiquem salvos em formato digital. Com isso, o usuário poderá enviar as informações e obter o aval para viajar antes mesmo de sair de casa, como já se faz com o check-in. Com alguns toques no celular, a viagem é confirmada e gera-se um código para ser mostrado na entrada do avião.
“É uma urgência retirar o papel e ir em direção ao modelo que chamamos de ‘ready to fly’: o cara chega no aeroporto e está pronto para viajar. O aeroporto vira um ponto de passagem, e não mais de controle. A ideia é que a maior parte das etapas seja feita antes da chegada ao terminal”, diz Filipe Reis, diretor de aeroportos, passageiros, cargas e segurança da Iata nas Américas.
A Iata (Associação das Empresas de Transporte Aéreo) e a Icao (Organização Internacional da Aviação Civil, na sigla em inglês) trabalham em conjunto para definir as regras dos voos internacionais e padronizar procedimentos.
“Papel não serve mais. Não é sustentável em termos de volume e nem de segurança. A falsificação evolui o tempo inteiro. E as empresas não querem papel porque ele atrasa processos e isso gera custos”, diz Reis.
O projeto, tocado por Iata e Icao para modificar o passaporte atual, é chamado de One Id. Ele prevê a criação de um modelo único de arquivo digital capaz de guardar a identificação dos passageiros e que possa ser lido por todos os países. Além dos dados de identidade, o arquivo digital traria vistos, vacinas tomadas e os dados biométricos dos viajantes.
O passaporte poderia funcionar como um cartão virtual de aproximação, salvo em carteiras digitais como Apple Pay e Google Pay: quando o viajante precisar mostrar seus dados, ele liberaria o acesso por meio de uma senha, no seu próprio aparelho, a um agente de fronteira, por exemplo.
No entanto, a transição pode avançar uma etapa: em vez de apresentar um código de barras ou cartão virtual, o próprio rosto do passageiro se tornaria o cartão de embarque. E o passaporte.
Funcionaria assim: cada viajante teria um passaporte virtual. Antes de realizar uma viagem, a pessoa enviaria os seus dados para a empresa aérea e para as autoridades do país de destino. Este “pacote” incluiria dados biométricos, como suas digitais ou o formato do rosto.
Os governos dos dois países envolvidos na viagem fariam então uma checagem antecipada. Com a saída de um país e a entrada em outro aprovada, não seria preciso pegar filas nos aeroportos: ao chegar no destino, o passageiro sairia do avião, passaria por uma checagem facial e poderia ir sair à rua sem falar com ninguém.
Em aeroportos brasileiros, como o de Guarulhos, já há equipamentos de autoatendimento no controle de fronteira: brasileiros escaneiam o passaporte, depois olham para uma câmera e, confirmado o reconhecimento facial, podem seguir viagem.
“Para que a gente consiga avançar, o desafio não é a tecnologia. O que faz mais falta é desenvolver confiança entre os Estados”, aponta Reis. “Todos os mais de 200 países associados tem o direito de participar do debate.”
As discussões já duram mais de dez anos, e não há prazo para o início da implantação. “É um processo lento. Eu falo que deve levar mais uma década, mas talvez esteja sendo otimista. Porém, nos próximos anos a gente já deverá ter um certo volume, de formas muitas vezes bilateral”, diz Reis.
Alguns países fazem testes, como Canadá e Holanda. Nesse piloto, os passageiros terão seus dados biométricos checados no Canadá, que transferirá a lista de aprovações para o governo holandês. Ao chegar no país europeu, os viajantes poderão desembarcar sem passar por controles, como se fosse um voo doméstico.
Outro teste de troca de informações está sendo feito entre Noruega e Croácia. Em seguida, devem vir provas multilaterais, como blocos de países vizinhos facilitando as viagens na mesma região. A expectativa é que os experimentos ajudem a ver se a ideia funciona na prática e como aperfeiçoá-la.
Reis estima que a transição deve custar alguns bilhões de dólares, e diz que ainda se debate quem pagará por ela: os governos terão de adotar novos sistemas e equipamentos, assim como as empresas. Os aeroportos também precisarão fazer adequações físicas.
“A tecnologia ganha escala muito rápido e os preços vão baixando. Câmeras biométricas custavam milhares de dólares, hoje estão custando centenas e no futuro podem custar dezenas de dólares”, aponta.
Por outro lado, a tecnologia de reconhecimento facial ainda é alvo de questionamentos: tende a falhar mais com pessoas negras, asiáticas e de outras etnias, pois muitas vezes os bancos de dados usados para treiná-la se baseiam em pessoas brancas, lembra Bárbara Simão, coordenadora da área de privacidade e vigilância do InternetLab.
“Ela também costuma errar mais com crianças e idosos, que estão em fase de crescimento e mudança nas feições”, aponta. “Mesmo que a chance de erro seja de 0,1%, se ela for usada por milhões de pessoas, há chances de muita gente ser afetada.”
Outra preocupação é como será feita a governança dos dados dos usuários: um vazamento nos bancos de dados com a biometria dos passageiros poderia ter graves consequências.
Reis diz que o projeto está sendo estruturado de modo a respeitar as leis de proteção de dados adotadas pelo mundo, como a LGPD brasileira. Assim, as companhias e governos se comprometeriam a captar o mínimo de informações necessário e a se desfazer deles depois de determinado período.
Com isso, o governo de um país poderia guardar uma lista com os nomes das pessoas que visitaram seu território, mas não seus dados biométricos, por exemplo.
Não está prevista a criação de uma base global de dados: cada país manteria as informações dos cidadãos de seus países, como é hoje. E caberia aos passageiros autorizar, a cada vez, o compartilhamento de suas informações para as companhias aéreas, aeroportos e o país de destino.
O projeto prevê ainda que sempre haja alternativas para quem não queira ou não possa usar dados biométricos para se identificar ao viajar.