Presença mais do que obrigatória na mesa dos capixabas durante a Semana Santa — especialmente entre aqueles com tradição católica mais forte —, a tradicional torta capixaba tem como ingrediente principal o bacalhau. Mas o morador da Serra que quiser manter essa tradição precisa preparar o bolso: em diversas redes de supermercados pesquisadas pela Coluna, o quilo do bacalhau ultrapassa os R$ 200.
A situação chega a ser historicamente anacrônica, já que a Sexta-feira Santa marca o dia da morte de Jesus Cristo na cruz. Como sinal de respeito, penitência e sacrifício, os fiéis são convidados a praticar jejum e a abstinência de carne. Naquele tempo, a carne vermelha era associada ao luxo, celebração e prazer, sendo evitada como forma de lembrar o sofrimento de Cristo.
Por outro lado, o peixe simbolizava simplicidade, humildade e tinha forte significado espiritual dentro do cristianismo. Nos tempos bíblicos, era o alimento comum entre os discípulos de Jesus.
Com o passar do tempo, no entanto, os papéis parecem ter se invertido. Embora nem sempre a carne vermelha seja acessível a todos, alguns cortes de bacalhau se tornaram verdadeiras iguarias de luxo. A Coluna visitou quatro grandes redes de supermercados na Serra e constatou: a Sexta-feira Santa vai pesar no bolso — e não é só no sentido espiritual.
Não foi apenas na Serra que o preço do bacalhau encareceu. Segundo dados de março do IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), o produto registrou alta de 6,45% no acumulado dos últimos 12 meses.
Grande parte do bacalhau consumido no Brasil — e, consequentemente, na Serra — vem da Noruega, embora parte do produto seja processado e reexportado por Portugal, que também compra o peixe norueguês, faz o beneficiamento e revende ao mercado brasileiro.
No comércio, os tipos mais comuns são: Gadus morhua (também conhecido como Bacalhau do Porto ou Bacalhau da Noruega), considerado o mais nobre e tradicional; E outras espécies como Saithe, Ling e Zarbo, que são mais acessíveis, porém com sabor e textura diferentes.
Na prática, os preços assustam: O Bacalhau do Porto desfiado custa na Serra, em média, R$ 220/kg, e é vendido em bandejas de 500g, o que rende uma torta média para cerca de cinco pessoas (a depender da receita). Já o mesmo bacalhau em postas sai por aproximadamente R$ 199/kg. Os cortes mais nobres, como o lombo, podem ultrapassar esse valor com facilidade.
Para quem busca opções mais econômicas, supermercados da Serra oferecem o Saithe, vendido a cerca de R$ 95/kg — ou seja, praticamente metade do preço do Gadus morhua. No entanto, seu sabor é mais suave e sua textura, menos refinada. Os tipos Ling e Zarbo, embora menos populares, também aparecem como alternativas viáveis para algumas receitas.
O consumidor serrano deve estar atento: nem todo peixe salgado e seco é bacalhau de verdade. Muitos supermercados comercializam peixes salgados “tipo bacalhau”, que na verdade são de outras espécies, preparados para simular o sabor e a aparência do verdadeiro bacalhau.
Essa prática, embora permitida se houver rotulagem adequada, tem sido alvo de críticas por parte de consumidores e órgãos de defesa do consumidor, que apontam possível má fé de empresas ao induzirem pessoas desavisadas a acreditarem que estão comprando um produto nobre, quando na verdade estão levando uma imitação. Portanto, antes de colocar o peixe no carrinho, vale observar com atenção o nome científico no rótulo, a procedência e, claro, desconfiar de preços muito abaixo da média.
Ainda que, a partir dos anos 2000, a matriz religiosa da Serra tenha começado a sofrer alterações — num processo em que o público evangélico superou numericamente os católicos —, o município ainda preserva uma forte tradição ligada ao catolicismo, que exerceu grande influência em seu processo de formação econômica, social e política desde os primeiros momentos da colonização portuguesa e ao longo dos séculos seguintes.
A torta capixaba é também um reflexo dessa herança cultural. Trata-se de um prato típico do Espírito Santo que valoriza a tradição de um estado com forte inclinação religiosa, especialmente durante a Semana Santa, que carrega uma mistura entre influências indígenas, portuguesas e africanas.